O problema
mente-cérebro consiste em explicar como mente e cérebro se relacionam
reciprocamente. Uma solução definitiva para essa questão equivale a desvendar
um colossal enigma existencial, talvez o mistério ontológico que mais importa
ao homem: “o que nós somos?”. A
resposta materialista para esse problema tem mediado, grosso modo, entre dois
principais tipos de soluções:
1º tipo: uma boa
parte dos materialistas entende que estados mentais – como crenças, desejos,
pensamentos, percepção, experiência, etc. – são aquilo que o cérebro faz, de
maneira que eles são causalmente dependentes dele. Aqui as analogias com
sistemas computacionais rolam em abundância e teorias computacionais da mente são bem debatidas nas ciências
cognitivas;
2º tipo: outra
parcela considerável de materialistas pensa que aquelas pessoas “que acreditam na existência de pensamentos,
crenças, desejos, motivações e outros estados mentais são vítimas de
'psicologia popular', uma atitude não-científica que, a seu devido tempo será
substituída por explicações em termos de atividades dos nervos. Psicologia
popular é uma espécie de superstição, como a crença em demônios, que ficará
para trás com o avanço da compreensão científica" - analisou
criticamente Sheldrake (2012)[1].
A diferença básica entre os tipos 1 e 2 de materialistas é que, em “2”, mente e cérebro são numericamente a mesma “coisa”. É dizer, há mais do que uma redutibilidade causal; há uma redutibilidade ontológica dos estados mentais a estados do cérebro. Falar de “mente”, de estados mentais, é apenas um modo supersticioso de discorrer sobre os processos neurofisiológicos que estão ocorrendo a cada milésimo de segundo em nossos sistemas nervosos. Agora, no tipo “1”, os estados mentais seriam algo distinto do cérebro, i.e., não haveria redutibilidade ontológica, porém seriam como uma propriedade de alto-nível emergente da atividade cerebral, mas que, de qualquer forma, é causalmente dependente desta.
Existem algumas
nuances nesses dois tipos de perspectivas materialistas que rendem variadas discussões.
Além disso, esses modelos metafísicos de materialismo têm suas inteligibilidades
questionadas diante de críticas bem ponderadas e as quais, eventualmente,
veremos em outras postagens. Seja como for, o crucial neste momento, a despeito
das diferenças filosóficas entre os tipos “1” e “2” de materialismo, é que, em
ambos, sem o cérebro não há que se falar em mentes. O cérebro, ou o corpo
como um todo, é tudo o que há, de maneira que, nos parágrafos abaixo, tomarei o
tipo “1” como modelo, especialmente porque ele tem rendido um maior número de seguidores.
Pois bem, o
materialismo, certamente enquanto candidato para a solução do problema
mente-cérebro, é uma hipótese possível de um ponto de vista da lógica. Em
outras palavras: não existe nenhuma autocontradição na chance de meu cérebro produzir
estados mentais. Contudo, o que é logicamente possível não quer dizer que também o seja empiricamente. Sendo assim, é importante questionar que tipos de evidências
os materialistas têm para concluir que o cérebro cria a mente.
O psicólogo,
escritor e historiador da ciência estadunidense Michael Shermer, em artigo
publicado na Scientific American Brasil,
nos concede uma breve síntese a respeito das evidências científicas que – para
ele – podem favorecer uma interpretação materialista para o problema
mente-cérebro:
“[...]A hipótese de que o cérebro cria a consciência, porém,
tem muito mais evidências a seu favor[...] Danos ao giro fusiforme do lobo
temporal, por exemplo, provocam cegueira facial, e a estimulação dessa mesma
área faz as pessoas verem rostos espontaneamente. Danos provocados por AVCs à
região do córtex visual chamada V1 levam à perda de percepção visual
consciente. Mudanças na experiência consciente podem ser medidas diretamente
por RM funcional, eletroencefalografia e registros de neurônios isolados.
Neurocientistas conseguem prever escolhas humanas a partir da atividade
cerebral antes que o próprio sujeito esteja consciente delas. Usando apenas
varreduras cerebrais, eles foram até capazes de reconstruir, no computador, o
que alguém vê. Milhares de experimentos confirmam a hipótese de que processos
neuroquímicos produzem experiências subjetivas"[2].
O
que Shermer e muitos outros, contudo, deixam de observar é que mudanças comportamentais,
de humor, cognitivas, perceptuais, mnemônicas, e outras modificações na personalidade,
subsequentes ou simultâneas a alterações (na estrutura ou no
funcionamento) cerebrais, não implicam necessariamente
numa redutibilidade causal daqueles estados mentais a estados do cérebro. De
fato, é logicamente possível e até mesmo de senso comum que duas coisas podem
interagir com forte dependência funcional, no sentido de que ambas diretamente
afetam o funcionamento uma da outra, reciprocamente moldando suas formas de
expressão, sem que qualquer delas tenha criado, produzido ou dado causa a contraparte.
Materialistas aqui caem na falácia hoc ergo propter cum hoc, ou
falácia da correlação coincidente, ou seja, confundem paralelismo fundado
numa causa comum com dependência causal, algo que já tinha sido observado por F.
C. S. Schiller desde 1894 em seu monumental Riddles
of the Sphinx: A Study in the Philosophy of Humanism.
Por
exemplo, uma analogia contemporânea para ilustrar a existência de dependência
funcional (e não causal) é a comparação da interação mente-cérebro àquela que
acontece com os sinais que atingem um televisor. Todos estamos cientes que os sinais
de imagens/sons não são produzidos por aquele equipamento, mas apenas transmitidos
por ele. Certamente a ocorrência de defeitos no aparelho pode simultaneamente provocar
a distorção da imagem, a perda de cores, chuviscos, sons ruidosos, etc., porém,
isso, de nenhuma forma, significa que o televisor está criando os sinais. Tudo
o que há é uma correlação coincidente
entre alterações estruturais no equipamento e as formas como aqueles sinais
são expressados, e tudo isso ocorre sem qualquer dependência causal, mas tão
somente funcional. Existe dependência funcional porque os sinais podem sofrer
inúmeras formas de modelagem ao atravessar os mais variados tipos de equipamento.
Na
perspectiva de uma mente transmitida pelo cérebro pode acontecer algo parecido.
A “imagem” de como a mente irá ser transmitida através do cérebro, tal como a
imagem que aparece na tela de seu televisor, é o que você pode chamar de
‘personalidade ordinária de um indivíduo’ ou seu ‘Eu habitual’, mas que de
nenhuma forma representa sua unidade final e mais profunda, da mesma forma que
a imagem exibida na tela da televisão não pode ser identificada como o sinal decomposto
pelo equipamento. De fato, o mesmo sinal pode produzir imagens variadas (nível
de saturação, brilho, cor, resolução, acompanhadas por ghosting, screen
tearing, backlight bleeding, etc.), dependendo do tipo de equipamento.
Semelhantemente, a “imagem” do sinal mental, sem dúvida, dependeria, nessa
perspectiva, da estrutura e do funcionamento corporal.
A filósofa
Patricia Churchland, em entrevista a Alex Tsakiris (2014)[3], usa um
raciocínio semelhante ao de Shermer. Quando indagada pelo entrevistador sobre a
hipótese de a consciência ser fundamental e ontologicamente independente do
cérebro, Churchland diz que “um dos
problemas com essa abordagem é que não podemos entender porque tomar um
medicamento, por exemplo, deve mudar sua consciência”. Agora, tanto
Patricia quanto Shermer são pessoas muito bem instruídas, inteligentes e
inteiradas sobre o tema para ignorar o fato de que suas abordagens apenas focam
num dos lados da relação mente-cérebro: aquele em que o sistema físico parece
ser o gatilho da manifestação fenomenológica. Assim, infelizmente o que vejo é que há uma
argumentação ad nauseam por parte de
materialistas no que diz respeito à falácia da correlação coincidente.
Há, porém,
um outro lado da moeda que não pode ser deixado de lado, sob pena de nos
contentarmos com uma resposta muito incompleta para o problema mente-cérebro.
Ora, existem diversos exemplos de influências psicossomáticas, tais como o
placebo, psiconeuroimunologia, neurofeedback,
complicações fisiológicas disparadas por estados emocionais, entre outras
formas de psicossomatismo, em que o mental parece ser o elemento desencadeador
subjacente, porém, isso de nenhuma forma autoriza-me a concluir no sentido
inverso, i.e., de que a mente cria ou produz o corpo. Entender que a mente
emerge do funcionamento cerebral, porque ela pode ser diretamente afetada por
ele é assumir a existência de dependência causal, quando a evidência permite
que se conclua apenas por uma espécie de dependência funcional. Conforme
comentou o Nobel Henri Bergson em seu discurso presidencial para a Society for Psychical Research (1914):
"[...]se a consciência não é uma função do
cérebro, pelo menos, o cérebro a mantém fixa sobre o mundo em que vivemos; ele é
o órgão de atenção à vida. É por isso que uma modificação cerebral, ainda que
ligeira, - uma passageira intoxicação por álcool ou ópio, por exemplo (mais
ainda uma intoxicação duradoura como aquelas que, sem dúvida, frequentemente
provocam insanidade), pode promover uma perturbação completa da vida mental"[4].
Você pode
estar, no entanto, inclinado a insistir que já temos muitos dados
neurofisiológicos provenientes de estudos de neuroimagem, eletroencefalografia
e, entre tantos outros, os quais já nos fornecem muitas respostas sobre os
processos neurobiológicos responsáveis pela emergência de diversas faculdades
mentais, tais como a percepção, memória, cognição, vontade e experiência
subjetiva. Os recentes trabalhos em neurociência, por exemplo, têm se orientado
na pesquisa dos correlatos neurais da consciência (CNCs). Christof Koch,
aclamado professor de biologia cognitiva e comportamental do California Institute of Technology,
declarou em 2007 que “toda percepção
consciente está associada a uma coalizão específica de neurônios que agem de
maneira específica”. E nutre esperanças de que “em breve, a habilidade crescente dos neurocientistas de manipular
populações de neurônios nos permitirá deixar de observar que um estado
consciente particular está associado a alguma atividade neuronal para passar a
identificar a relação causal – observando que uma dada população é parcial ou
completamente responsável por um estado consciente”[5].
Agora,
independente de qual seja o mecanismo neurofisiológico subjacente à consciência, não podemos passar por cima
do fato de que, mesmo havendo o mapeamento cerebral de todos os CNCs, isso não
implica, necessariamente, uma relação de dependência causal de estados mentais
a estados do cérebro. Essa assunção nos conduz ao erro lógico de raciocínio que
estamos salientando aqui e que devemos evitar. Correlação entre eventos não
implica causação e, ainda que haja uma relação matematicamente perfeita entre
eventos cerebrais e mentais -o que está muito longe de acontecer- isso não
autoriza afirmar a existência de uma dependência causal, mas tão somente
funcional.
Então
vemos que a esperança de Koch, infelizmente fundada numa lógica mal empregada,
reflete tão só mais um dos anseios de pessoas que vivem herméticas num
materialismo promissório e pouco elucidativo a respeito dos problemas mais
básicos: como funciona a relação
mente-cérebro? Existe realmente uma relação de dependência causal ou somente
funcional? O que é, quando, por que e como surgiu a experiência consciente?
[1] The Science Delusion. Coronet Books; First edition & printing
in this form edition.
[2] A mente da tia
Millie: a morte cerebral significa que experiências subjetivas são
neuroquímicas <http://www2.uol.com.br/sciam/artigos/a_mente_da_tia_millie.html>.
Acessado em 31/10/2015.
[3] Why Science Is Wrong…About Almost Everything.
Anomalist Books, San Antonio.
[4] Proceedings of
The Society for Psychical Research, LXVIII, Janeiro de 1914.
[5] Como a Consciência se Manifesta?
Scientific American Brasil (edição 66, Nov. 2007).
<http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/como_a_consciencia_se_manifesta__imprimir.html> Acessado em
27/10/2015.
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