segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O Materialismo e a falácia hoc ergo propter cum hoc

O problema mente-cérebro consiste em explicar como mente e cérebro se relacionam reciprocamente. Uma solução definitiva para essa questão equivale a desvendar um colossal enigma existencial, talvez o mistério ontológico que mais importa ao homem: “o que nós somos?”. A resposta materialista para esse problema tem mediado, grosso modo, entre dois principais tipos de soluções:

1º tipo: uma boa parte dos materialistas entende que estados mentais – como crenças, desejos, pensamentos, percepção, experiência, etc. – são aquilo que o cérebro faz, de maneira que eles são causalmente dependentes dele. Aqui as analogias com sistemas computacionais rolam em abundância e teorias computacionais da mente são bem debatidas nas ciências cognitivas;

2º tipo: outra parcela considerável de materialistas pensa que aquelas pessoas “que acreditam na existência de pensamentos, crenças, desejos, motivações e outros estados mentais são vítimas de 'psicologia popular', uma atitude não-científica que, a seu devido tempo será substituída por explicações em termos de atividades dos nervos. Psicologia popular é uma espécie de superstição, como a crença em demônios, que ficará para trás com o avanço da compreensão científica" - analisou criticamente Sheldrake (2012)[1].

A diferença básica entre os tipos 1 e 2 de materialistas é que, em “2”, mente e cérebro são numericamente a mesma “coisa”. É dizer, há mais do que uma redutibilidade causal; há uma redutibilidade ontológica dos estados mentais a estados do cérebro. Falar de “mente”, de estados mentais, é apenas um modo supersticioso de discorrer sobre os processos neurofisiológicos que estão ocorrendo a cada milésimo de segundo em nossos sistemas nervosos. Agora, no tipo “1”, os estados mentais seriam algo distinto do cérebro, i.e., não haveria redutibilidade ontológica, porém seriam como uma propriedade de alto-nível emergente da atividade cerebral, mas que, de qualquer forma, é causalmente dependente desta.

Existem algumas nuances nesses dois tipos de perspectivas materialistas que rendem variadas discussões. Além disso, esses modelos metafísicos de materialismo têm suas inteligibilidades questionadas diante de críticas bem ponderadas e as quais, eventualmente, veremos em outras postagens. Seja como for, o crucial neste momento, a despeito das diferenças filosóficas entre os tipos “1” e “2” de materialismo, é que, em ambos, sem o cérebro não há que se falar em mentes. O cérebro, ou o corpo como um todo, é tudo o que há, de maneira que, nos parágrafos abaixo, tomarei o tipo “1” como modelo, especialmente porque ele tem rendido um maior número de seguidores.

Pois bem, o materialismo, certamente enquanto candidato para a solução do problema mente-cérebro, é uma hipótese possível de um ponto de vista da lógica. Em outras palavras: não existe nenhuma autocontradição na chance de meu cérebro produzir estados mentais. Contudo, o que é logicamente possível não quer dizer que também o seja empiricamente. Sendo assim, é importante questionar que tipos de evidências os materialistas têm para concluir que o cérebro cria a mente. 

O psicólogo, escritor e historiador da ciência estadunidense Michael Shermer, em artigo publicado na Scientific American Brasil, nos concede uma breve síntese a respeito das evidências científicas que – para ele – podem favorecer uma interpretação materialista para o problema mente-cérebro:

“[...]A hipótese de que o cérebro cria a consciência, porém, tem muito mais evidências a seu favor[...] Danos ao giro fusiforme do lobo temporal, por exemplo, provocam cegueira facial, e a estimulação dessa mesma área faz as pessoas verem rostos espontaneamente. Danos provocados por AVCs à região do córtex visual chamada V1 levam à perda de percepção visual consciente. Mudanças na experiência consciente podem ser medidas diretamente por RM funcional, eletroencefalografia e registros de neurônios isolados. Neurocientistas conseguem prever escolhas humanas a partir da atividade cerebral antes que o próprio sujeito esteja consciente delas. Usando apenas varreduras cerebrais, eles foram até capazes de reconstruir, no computador, o que alguém vê. Milhares de experimentos confirmam a hipótese de que processos neuroquímicos produzem experiências subjetivas"[2].

O que Shermer e muitos outros, contudo, deixam de observar é que mudanças comportamentais, de humor, cognitivas, perceptuais, mnemônicas, e outras modificações na personalidade, subsequentes ou simultâneas a alterações (na estrutura ou no funcionamento) cerebrais, não implicam necessariamente numa redutibilidade causal daqueles estados mentais a estados do cérebro. De fato, é logicamente possível e até mesmo de senso comum que duas coisas podem interagir com forte dependência funcional, no sentido de que ambas diretamente afetam o funcionamento uma da outra, reciprocamente moldando suas formas de expressão, sem que qualquer delas tenha criado, produzido ou dado causa a contraparte. Materialistas aqui caem na falácia hoc ergo propter cum hoc, ou falácia da correlação coincidente, ou seja, confundem paralelismo fundado numa causa comum com dependência causal, algo que já tinha sido observado por F. C. S. Schiller desde 1894 em seu monumental Riddles of the Sphinx: A Study in the Philosophy of Humanism.

Por exemplo, uma analogia contemporânea para ilustrar a existência de dependência funcional (e não causal) é a comparação da interação mente-cérebro àquela que acontece com os sinais que atingem um televisor. Todos estamos cientes que os sinais de imagens/sons não são produzidos por aquele equipamento, mas apenas transmitidos por ele. Certamente a ocorrência de defeitos no aparelho pode simultaneamente provocar a distorção da imagem, a perda de cores, chuviscos, sons ruidosos, etc., porém, isso, de nenhuma forma, significa que o televisor está criando os sinais. Tudo o que há é uma correlação coincidente entre alterações estruturais no equipamento e as formas como aqueles sinais são expressados, e tudo isso ocorre sem qualquer dependência causal, mas tão somente funcional. Existe dependência funcional porque os sinais podem sofrer inúmeras formas de modelagem ao atravessar os mais variados tipos de equipamento.

Na perspectiva de uma mente transmitida pelo cérebro pode acontecer algo parecido. A “imagem” de como a mente irá ser transmitida através do cérebro, tal como a imagem que aparece na tela de seu televisor, é o que você pode chamar de ‘personalidade ordinária de um indivíduo’ ou seu ‘Eu habitual’, mas que de nenhuma forma representa sua unidade final e mais profunda, da mesma forma que a imagem exibida na tela da televisão não pode ser identificada como o sinal decomposto pelo equipamento. De fato, o mesmo sinal pode produzir imagens variadas (nível de saturação, brilho, cor, resolução, acompanhadas por ghosting, screen tearing, backlight bleeding, etc.), dependendo do tipo de equipamento. Semelhantemente, a “imagem” do sinal mental, sem dúvida, dependeria, nessa perspectiva, da estrutura e do funcionamento corporal.

A filósofa Patricia Churchland, em entrevista a Alex Tsakiris (2014)[3], usa um raciocínio semelhante ao de Shermer. Quando indagada pelo entrevistador sobre a hipótese de a consciência ser fundamental e ontologicamente independente do cérebro, Churchland diz que “um dos problemas com essa abordagem é que não podemos entender porque tomar um medicamento, por exemplo, deve mudar sua consciência”. Agora, tanto Patricia quanto Shermer são pessoas muito bem instruídas, inteligentes e inteiradas sobre o tema para ignorar o fato de que suas abordagens apenas focam num dos lados da relação mente-cérebro: aquele em que o sistema físico parece ser o gatilho da manifestação fenomenológica. Assim, infelizmente o que vejo é que há uma argumentação ad nauseam por parte de materialistas no que diz respeito à falácia da correlação coincidente.

Há, porém, um outro lado da moeda que não pode ser deixado de lado, sob pena de nos contentarmos com uma resposta muito incompleta para o problema mente-cérebro. Ora, existem diversos exemplos de influências psicossomáticas, tais como o placebo, psiconeuroimunologia, neurofeedback, complicações fisiológicas disparadas por estados emocionais, entre outras formas de psicossomatismo, em que o mental parece ser o elemento desencadeador subjacente, porém, isso de nenhuma forma autoriza-me a concluir no sentido inverso, i.e., de que a mente cria ou produz o corpo. Entender que a mente emerge do funcionamento cerebral, porque ela pode ser diretamente afetada por ele é assumir a existência de dependência causal, quando a evidência permite que se conclua apenas por uma espécie de dependência funcional. Conforme comentou o Nobel Henri Bergson em seu discurso presidencial para a Society for Psychical Research (1914):

"[...]se a consciência não é uma função do cérebro, pelo menos, o cérebro a mantém fixa sobre o mundo em que vivemos; ele é o órgão de atenção à vida. É por isso que uma modificação cerebral, ainda que ligeira, - uma passageira intoxicação por álcool ou ópio, por exemplo (mais ainda uma intoxicação duradoura como aquelas que, sem dúvida, frequentemente provocam insanidade), pode promover uma perturbação completa da vida mental"[4].

Você pode estar, no entanto, inclinado a insistir que já temos muitos dados neurofisiológicos provenientes de estudos de neuroimagem, eletroencefalografia e, entre tantos outros, os quais já nos fornecem muitas respostas sobre os processos neurobiológicos responsáveis pela emergência de diversas faculdades mentais, tais como a percepção, memória, cognição, vontade e experiência subjetiva. Os recentes trabalhos em neurociência, por exemplo, têm se orientado na pesquisa dos correlatos neurais da consciência (CNCs). Christof Koch, aclamado professor de biologia cognitiva e comportamental do California Institute of Technology, declarou em 2007 que “toda percepção consciente está associada a uma coalizão específica de neurônios que agem de maneira específica”. E nutre esperanças de que “em breve, a habilidade crescente dos neurocientistas de manipular populações de neurônios nos permitirá deixar de observar que um estado consciente particular está associado a alguma atividade neuronal para passar a identificar a relação causal – observando que uma dada população é parcial ou completamente responsável por um estado consciente[5].

Agora, independente de qual seja o mecanismo neurofisiológico subjacente à consciência, não podemos passar por cima do fato de que, mesmo havendo o mapeamento cerebral de todos os CNCs, isso não implica, necessariamente, uma relação de dependência causal de estados mentais a estados do cérebro. Essa assunção nos conduz ao erro lógico de raciocínio que estamos salientando aqui e que devemos evitar. Correlação entre eventos não implica causação e, ainda que haja uma relação matematicamente perfeita entre eventos cerebrais e mentais -o que está muito longe de acontecer- isso não autoriza afirmar a existência de uma dependência causal, mas tão somente funcional.

Então vemos que a esperança de Koch, infelizmente fundada numa lógica mal empregada, reflete tão só mais um dos anseios de pessoas que vivem herméticas num materialismo promissório e pouco elucidativo a respeito dos problemas mais básicos: como funciona a relação mente-cérebro? Existe realmente uma relação de dependência causal ou somente funcional? O que é, quando, por que e como surgiu a experiência consciente?




[1] The Science Delusion. Coronet Books; First edition & printing in this form edition.
[2] A mente da tia Millie: a morte cerebral significa que experiências subjetivas são neuroquímicas <http://www2.uol.com.br/sciam/artigos/a_mente_da_tia_millie.html>. Acessado em 31/10/2015.
[3] Why Science Is Wrong…About Almost Everything. Anomalist Books, San Antonio.
[4] Proceedings of The Society for Psychical Research, LXVIII, Janeiro de 1914.
[5] Como a Consciência se Manifesta? Scientific American Brasil (edição 66, Nov. 2007).

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