quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A experiência consciente em David Chalmers: uma pedra no sapato do materialista

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Esta questão sobre a emergência da consciência com todas as suas propriedades qualitativas é o famoso "problema difícil”; a ciência está sem pistas sobre como explicar a consciência a partir da realidade física. Deste modo, num recente livro de Alva Noë (2009), elogiado por Oliver Sacks e Daniel Dennett, lemos no Prefácio: "após décadas de esforços concentrados por parte de neurocientistas, psicólogos e filósofos, apenas uma proposta sobre como o cérebro nos torna conscientes - como ele dá origem a sensação, sentimento, subjetividade - emergiu de forma incontestável: não temos a menor ideia" (p xi.). Se assim for, gostaria de, em seguida, dizer que estamos tanto autorizados a considerar a mente como o nosso ponto de partida básico como estamos de assumir que a ciência física irá um dia explicar as origens da mente; depois de um período prolongado de materialismo promissório infrutífero, a opção não-emergente parece perfeitamente válida”. (Michael Grosso, 2015, in Beyond Physicalism: Toward Reconciliation of Science and Spirituality).

A experiência é considerada o verdadeiro ‘problema difícil’' (“hard problem”) da consciência. O problema só é difícil (e, para alguns, intratável!) diante da insistência em explicá-la sob uma perspectiva materialista. Nas linhas abaixo tentarei resumir porque o materialismo não tem sequer um ponto de partida para explicar a experiência, e porque abordagens não-reducionistas parecem fazer muito mais sentido. Explicações não-reducionistas colocam a experiência numa posição privilegiada na natureza, elevando-a ao status de um primitivo ontológico, i.e, uma entidade/propriedade fundamental no Cosmos, tal como cargas e forças eletromagnéticas, massa e espaço-tempo. Também levantarei alguns problemas com a perspectiva não-reducionista pampsiquista de David Chalmers e sinalizarei alguns tópicos de pesquisa empírica que andam levando importantes cientistas e teóricos a passar a admitir a falsidade do materialismo mecanicista-reducionista até mesmo para lidar com os 'problemas fáceis' da consciência. 

Antes de começarmos, faço três observações preambulares para a inteligibilidade do tema: 

1ª - A experiência é um fenômeno associado à consciência, mas é comum na literatura vermos a palavra consciência como sinônimo de experiência. Isso pode levar a muitas confusões, porque a consciência engloba muitos outros fenômenos além da experiência, tais como percepção, reportabilidade, memórias, estados intencionais (crenças, desejos, etc.), vontade, aprendizagem, comportamento, etc.; 

2ª - O vocábulo consciência no presente texto, todavia, possui um alcance muito mais restrito, tendo sua noção central no significado de experiência subjetiva, a qual abrange, por exemplo, todas as experiências sensoriais (visuais, auditivas, tácteis, etc.); as sensações corporais (dor, fome, fadiga, etc.); o imaginário mental (a experiência de recordar uma percepção visual); os estados emocionais (a experiência de sentir alegria, tristeza, raiva, etc.); as experiências de pensamento (a exemplo das sensações de refletir e decidir, de sentir liberdade e de ter responsabilidade pessoal, etc); a sensação de autoconsciência, etc. (todas estas ilustrações vêm de Chalmers - com alguns acréscimos pessoais - e constituem inequívocos estados de experiência consciente);

3ª - Outros termos menos ou não-ambíguos habitualmente mencionados como sinônimos de experiência são ‘subjetividade’; ‘vida interna’; ‘qualidade subjetiva da consciência’; o aspecto ‘fenomenal’ da mente ou a ‘característica fenomenal’ do mundo; a palavra comparativa latina ‘qualia’ (“tal como”); a expressão de Thomas Nagel ‘como é ser aquele Ser'; e o ‘problema difícil da consciência’. Para evitar equívocos, tentarei sempre utilizar uniformemente o vocábulo experiência, porém, algumas citações de autores ao longo do texto podem trazer um dos outros termos acima para expressar exatamente o significado de experiência, inclusive a palavra consciência ou a expressão experiência consciente.


Pois bem, “não existe nada que conhecemos tão intimamente quanto a experiência consciente, mas não existe nada tão difícil de explicar", assim declarava o filósofo australiano David Chalmers há 20 anos. E continuou: "todos os tipos de fenômenos mentais têm se entregado à investigação científica nos últimos anos, mas a consciência tem teimosamente resistido. Muitos tentaram explicá-la, mas as explicações parecem sempre ficar aquém do alvo. Alguns foram levados a supor que o problema é intratável e que nenhuma boa explicação pode ser dada.[1].

Mas o que Chalmers quer dizer com ‘experiência consciente’? Para entendê-la e saber porque ela é tão difícil de explicar, você tem que tomar o problema da experiência sob o ponto de vista de um materialista e sempre tentar explicá-la a partir de funções desempenhadas por estruturas físicas de nível mais baixo, pois “de acordo com o atual estado da arte do materialismo, o principal elemento da realidade é um conjunto relativamente pequeno de partículas subatômicas fundamentais descritas no então chamado modelo padrão da física de partículas. Estas partículas são referidas como 'primitivos' ontológicos: são blocos de construção básicos do materialismo para a construção de tudo o que há na natureza, de galáxias a cadeiras, de você a mim”, pontuou Bernardo Kastrup (2014)[2].

E continuou:

“Em outras palavras, devemos ser capazes de construir explicações para cada objeto ou fenômeno na natureza em termos da dinâmica destas partículas subatômicas; como elas se movem e interagem umas com as outras. O problema é que o materialismo normalmente assume que estas partículas subatômicas são desprovidas de consciência”.

Considere, por exemplo, as inúmeras atividades de processamento de informações de seu hardware de computador, todas elas realizadas pelo funcionamento conjunto de pequenos a microcomponentes arranjados de formas especializadas. Seu computador recebe diversos inputs, tais como aqueles enviados pelo usuário através dos periféricos de entrada, pela internet, aqueles captados através de mídias, webcams ou outros dispositivos de sensoriamento, softwares recentemente instalados, etc. Pois bem, todos estes dados são processados internamente e, em seguida, sai uma resposta computacional apropriada.

Da mesma forma, cada um de nós recebe diversos inputs, ambientais e internos, processa esses dados e executa um comportamento adequado como resposta aos estímulos. Não é à toa que nas ciências cognitivas têm eclodido diversas tentativas em desenvolver modelos computacionais da mente (tais como o modelo de múltiplos rascunhos, de Daniel Dennett; o da linguagem de pensamento (LOT), de Jerry Fodor; a Psicologia Cognitiva, de Ulric Neisser; o "instinto de linguagem", de Steven Pinker; o funcionalismo de Hilary Putnam e a teoria computacional/representacional do Pensamento, de Georges Rey). Contudo, no que se refere a nós, existe um componente extra e que vem em paralelo àquele processamento consciente dos estímulos. Esse componente é a experiência. Conforme Chalmers coloca “Por que é que quando os nossos sistemas cognitivos se envolvem no processamento de informações visual e auditiva, nós temos experiências visual ou auditiva: a qualidade do azul profundo, a sensação do Dó central? Como podemos explicar por que existe algo que é como entreter uma imagem mental, ou experimentar uma emoção?”.

Lembre-se novamente: dentro de uma perspectiva materialista, nós somos equiparados a uma máquina e realmente muitas analogias a sistemas artificiais encaixam-se perfeitamente ao nosso funcionamento. Por exemplo, considere nossas capacidades de discriminar e classificar; de reagir a estímulos ambientais; de cognitivamente integrar informações e armazená-las; de reportar estados mentais e acessar estados internos; de focar atenção e controlar o comportamento. Como Chalmers observa, todos esses fenômenos são associados à consciência e são vulneráveis a explicações em termos de mecanismos computacionais ou neurais, e por isso categorizados como os 'problemas fáceis' da consciência (ou "easy problems").

Explicar o armazenamento de informações e acesso, por exemplo, é apenas explicar como um sistema, artificial ou biológico, pode reter novas informações e em seguida recuperá-las deliberadamente. Para elucidar os estímulos ambientais, basta explicar como um sistema é capaz de ser afetado por inputs externos e utilizar estas informações para apresentar uma resposta ou comportamento posterior. Da mesma forma, para a discriminação e classificação, tudo o que é necessário é saber como estruturas físicas desempenham funcionalmente tais capacidades, e assim vai para todos aqueles fenômenos acima.

Por mais que seja difícil elucidar como sistemas biológicos possam engajar tais tarefas, existe claramente um ponto de partida que permite explicações reducionistas, bastando que neurocientistas expliquem, dentro de uma cadeia de causalidades, como estruturas de nível mais baixo funcionam de maneiras especializadas para dar causa a propriedades de nível superior. Agora, a lacuna explanatória para o materialista é: por que a execução de todos os fenômenos conscientes acima arrolados é acompanhada de experiência? "Por que todo esse processamento de informação não acontece 'no escuro', livre de qualquer sensação interior? Por que é que quando ondas eletromagnéticas colidem com uma retina e são discriminadas e classificadas por um sistema visual, a discriminação e categorização são experimentadas como uma sensação de vermelho vivo?", indaga Chalmers.

Colocando de outro modo o problema para o materialista, apresento as seguintes indagações: por que nós - tais como sistemas artificiais de computação - que teoricamente também seríamos feitos de bilhões de unidades sem-experiência (neurônios, etc.), quando engajamos o processamento de informações (semelhantemente a uma CPU), somos capazes de experimentar sensações, como a experiência de enxergar e de sentir dor, a angústia de um arrependimento, a experiência de um fluxo de pensamento reflexivo, a sensação qualitativa de um estado de medo ou de alegria? Por que, repita-se, o processamento de informação não acontece 'no escuro', da mesma forma que em seu microcomputador? Como pode a experiência emergir da união de bilhões de microcomponentes inexperienciais?  

Para deixar tudo muito claro, vamos mais além. Considere hardwares que processam enormes quantidades de vídeo-imagem, tais como os veículos espaciais autônomos que são dotados de sensores de visão. Tais equipamentos são capazes de se deslocar de forma independente, desviar de obstáculos (o que implica em alguma forma de percepção), registrar dados coletados e gerar relatórios com base nas imagens captadas e realizar outras tarefas com suporte em sensores de captura de vídeo-imagem. Os sensores de visão desses veículos possuem estruturas que discriminam e classificam formas, tamanhos e outras características dos objetos externos a partir das ondas eletromagnéticas recepcionadas em estruturas fotorreceptoras. O funcionamento é complexo e o esboço acima certamente é uma caricatura do sistema de "visão artificial" desses veículos, contudo, suficiente para o seguinte ponto que desejo destacar: o mecanismo da visão humana, sob uma perspectiva materialista, não é e nem pode ser ontologicamente diferente disso tudo, no entanto, nós temos algo adicional que os equipamentos com sistema de visão artificial, a toda evidência, não possuem: a experiência de enxergar.

Você pode ser tentado a dizer que nosso sistema visual é muito mais complexo e desenvolvido do que o daquelas máquinas e que provavelmente com os avanços tecnológicos adequados um dia elas também terão a experiência da visão. Mas a questão é: qual tipo de estrutura ou função deve ser incorporada àquelas máquinas espaciais para emergir a experiência de enxergar? Você pode colocar estruturas que ampliam a resolução e velocidade de captação das imagens; melhorar a funcionalidade de discriminação e classificação óptica; desenvolver as estruturas de processamento das imagens; incrementar a reportabilidade dos dados obtidos e a eficiência das respostas aos estímulos externos para que elas sejam sempre de formas apropriadas e imediatas. Mas novamente: o que deve ser incorporado ao sistema para causalmente produzir a experiência de enxergar?

Se é difícil entender como poderíamos fazer um sistema artificial ter a experiência em primeira pessoa de enxergar, não é menos tormentoso tentar explicar, sob bases exclusivamente materialistas, como nós próprios podemos ter a experiência da visão. A dificuldade é exatamente a mesma! Sobre a esperança de que os avanços da neurofisiologia podem um dia propiciar alguma resposta para o problema da experiência, Chalmers diz que essas descobertas “podem ajudar-nos a fazer progressos significativos na compreensão da função cerebral [como prover uma nova abordagem sobre as dinâmicas da função cognitiva], mas para todo processo neural que isolarmos, a mesma pergunta sempre surge [por que esse processo deveria dar origem à experiência?]. É difícil imaginar o que um defensor da nova neurofisiologia espera que aconteça para além da explicação de outras funções cognitivas. Não é como se nós, de repente, descobríssemos um brilho fenomenal dentro de um neurônio!

A total inabilidade do materialismo em responder tais questões é que tem alçado a experiência à categoria de o 'problema difícil' da consciência. A emergência da experiência simplesmente não pode ser deduzida a partir do funcionamento das estruturas físicas de nível mais baixo. Em outras palavras: o que faz a experiência ser considerada um problema difícil para o materialista é que ele não sabe nem que tipo de estrutura, função ou dinâmica deveria existir para explicá-la! Se admitirmos por um momento o materialismo como verdade, a emergência da experiência a partir de uma base física seria um grande mistério. Kastrup deixa bem claro esse ponto quando diz:

“O problema aqui é que, a menos que se esteja preparado para aceitar a mágica, as propriedades emergentes de um sistema complexo devem ser dedutíveis a partir das propriedades dos componentes de nível mais baixo do sistema. Por exemplo, podemos deduzir - e até mesmo prever - a forma das ondulações de areia a partir das propriedades dos grãos de areia e do vento. Nós podemos colocar tudo isso num programa de computador e assistir as ondulações de areia simuladas serem formadas na tela de computador e que parecem exatamente como a coisa real. Mas, quando se trata de consciência, nada nos permite deduzir as propriedades da experiência subjetiva - a vermelhidão do vermelho, o amargor do arrependimento, o calor do fogo - a partir da massa, momento, rotação, carga, ou qualquer outra propriedade das partículas subatômicas saltitando em torno do cérebro. Este é o problema difícil da consciência".

Então, se explicações reducionistas são destinadas a ser uma rota fracassada para chegarmos a uma solução sobre o hard problem da consciência, passa a ser coerente desenvolver teorias baseadas na experiência como um fenômeno irredutível na natureza, tal como massa, carga ou espaço-tempo. Uma coisa é certa e todos os filósofos estão de acordo: explicações reducionistas devem parar em algum lugar. Em determinado momento dentro de uma cadeia de causalidades nós devemos chegar a entidade mais básica ou fundamental. Tais entidades são consideradas primitivos ontológicos e delas não se exige explicações fundadas na decomposição em subunidades. Elas são consideradas os blocos básicos de construção de toda a realidade e é a partir delas que os fenômenos de níveis mais alto de complexidade na cadeia são esclarecidos. Nessa esteira, a experiência parece ser exatamente o tipo de fenômeno a ser categorizado como um primitivo ontológico.

A saída de Chalmers é tomar a experiência como algo irredutível na natureza, porém dependente de processos físicos. Ele de um certo modo aceita o dogma do paradigma científico atual e declara “nós sabemos que a experiência depende de processos físicos, mas nós sabemos que essa dependência não pode ser derivada somente a partir de leis físicas”. Chalmers se preocupa em alertar que “não há nada particularmente espiritual ou místico sobre essa teoria” e classifica sua hipótese de dualismo naturalístico. A noção dele a respeito da experiência envolve o conceito de informação:

“[...] que a informação (ou, pelo menos, alguma informação) tem dois aspectos básicos, um aspecto físico e um aspecto fenomenal. Isso tem o status de um princípio básico que pode ser subjacente e explicar o surgimento da experiência a partir do físico. Experiência surge em virtude de seu status como um dos aspectos da informação, enquanto o outro aspecto é achado incorporado na transformação física [...]
Somos levados a uma concepção do mundo em que a informação é verdadeiramente fundamental e tem dois aspectos básicos, um que corresponde ao físico e o outro que corresponde às características fenomenais do mundo”.

Seja como for, Chalmers reconhece que sua posição é extremamente especulativa e indeterminada, deixando várias questões em aberto. Por exemplo, será que todas as informações possuem um aspecto fenomenal, i.e., que fazem emergir a experiência?  Ele também admite que sua hipótese pode ser contraintuitiva:

Uma pergunta óbvia é se toda a informação tem um aspecto fenomenal. Uma possibilidade é que precisamos de uma restrição adicional sobre a teoria fundamental, indicando apenas qual tipo de informação tem um aspecto fenomenal. A outra possibilidade é que não existe tal limitação. Se não, então a experiência é muito mais difundida do que poderíamos acreditar, à medida que informação está em toda parte. Isso é contraintuitivo à primeira vista, mas, ao se refletir, a posição ganha uma certa plausibilidade e elegância. Onde existe processamento de informações simples, há experiências simples, e onde há um processamento de informações complexas, há experiências complexas. Um rato tem uma estrutura de processamento de informações mais simples do que um ser humano e tem experiências correspondentemente mais simples; pode um termostato, uma estrutura de processamento de informação maximamente simples, ter experiência maximamente simples? Com efeito, se a experiência é verdadeiramente uma propriedade fundamental, seria surpreendente ela surgir a partir de agora; a maioria das propriedades fundamentais está mais uniformemente distribuída. Em qualquer caso, esta é mais uma questão em aberto, mas eu acho que a posição não é tão implausível como muitas vezes se pensa”.

Questões adicionais devem ser mencionadas. Por exemplo, o que faz uma informação ser uma informação? Informação tem uma existência efêmera e só existe durante o processamento? O aspecto fenomenal da informação não poderia existir antes de ela "colidir" com um sistema físico de processamento cognitivo? Esse processamento tem que atingir o nível de semântica ou basta sintaxe? E o principal: como poderíamos levar a hipótese para além de uma discussão metafísica e desenvolver condições científicas de testabilidade?

O problema mais claro com esse tipo de abordagem pampsiquista é que ela ou exige que coloquemos uma linha arbitrária para separar informações que tenham aspectos fenomenais daquelas que não têm, ou então, que aceitemos que quaisquer sistemas com capacidade de processamento, ainda que bastante rudimentar, tenham qualidades experienciais. No primeiro caso, a arbitrariedade parte da ausência de um critério suficientemente idôneo para separar informações fenomenais das não-fenomenais. No segundo caso, somos obrigados a aceitar que sistemas que não demonstram o menor indício de possuir experiência tenham experiência, e isso vai desde seu relógio de pulso ao termostato de Chalmers. Você pode ficar inclinado a dizer que não é capaz de ter certeza que alguém, além de você, tem experiência, afinal, “zumbis filosóficos” podem estar em todos os cantos. Mas a questão não é ‘ter certeza’, mas ‘poder ser inferido’. Todas as outras pessoas, e muitos outros seres vivos, comportam-se de maneiras que nos permitem ‘inferir’ que tenham experiências. Eles realmente parecem sentir dor e prazer, experimentar emoções, ter experiências sensoriais, etc. Agora, você não pode dizer o mesmo de seu computador, caso contrário - parafraseando Kastrup - seria preciso pensar duas vezes antes de o desligar.

Chalmers sem dúvida tem o mérito de fazer o ataque mais devastador contra a suficiência do materialismo-reducionista para o problema da experiência. Ninguém foi tão persuasivo em demonstrar que incorporar mais estrutura e dinâmica aos sistemas só renderá estrutura e dinâmica mais complexas, contudo, não dirá nada porque elas são acompanhadas de experiência. No entanto, na hora de desenvolver sua própria teoria, ele aceita a promessa do materialismo de que no futuro todos os problemas fáceis da consciência serão respondidos pelas ciências cognitivas[3], e isso claramente influencia sua teoria da experiência baseada na informação, que no final das contas não deixa de ser uma versão de materialismo levemente mitigado: aceita-se para todos os fenômenos mentais explicações reducionistas, a exceção da experiência, mas que no fim, para existir, algum sistema físico deve estar processando informação! Conforme novamente observou Kastrup:

Sob o materialismo, se você não consegue explicar a consciência em termos de dinâmicas emergentes de partículas subatômicas inconscientes, você deve então postular que a consciência é em si uma propriedade fundamental - como carga elétrica, massa ou spin - de todas as partículas. Então você deve acreditar que todos os arranjos de matéria - de partículas subatômicas a moinhos de vento e dispositivos eletrônicos - são conscientes em diferentes graus. Esta é outra implicação oculta do materialismo que a maioria das pessoas não está ciente, e isso implica uma explosão insondável de entidades conscientes na natureza. O problema com o pampsiquismo, é claro, é que existe precisamente zero de evidência de que qualquer objeto inanimado é consciente. Para resolver um problema teórico e abstrato da metafísica materialista, alguém é forçado a projetar em toda a natureza uma propriedade - i.e., a consciência - que a observação somente permite ser inferida para um pequeno subconjunto dela - isto é, os seres vivos. Isto é, de certo modo, uma tentativa de fazer a natureza conformar com a teoria, em vez de fazer a teoria conformar com a natureza”. 

Atualmente diversos teóricos e pesquisadores já estão indo além do problema da experiência e apontam severas dificuldades para o materialismo responder até mesmo pelos problemas fáceis da consciência. Por exemplo, atualizações robustas da teoria da transmissão de William James (1898)[4] e Frederic Myers (1903)[5] podem ser encontradas em Edward Kelly et. al. (2007[6]; 2015[7]) e, de fato, muitos tópicos hoje já lançam um desafio empírico à convencional teoria da relação mente-cérebro, tais como:

(i) os casos reportados sobre a persistência de estados mentais organizados quando a atividade cerebral esteve aparentemente cessada ou, no mínimo, bastante prejudicada, tais como os inúmeros relatos de experiências de quase-morte (EQMs), alguns deles muito bem documentados e com riqueza de detalhes;

(ii) as experiências místicas e psicodélicas que liberam capacidades mentais superiores, a exemplo do incremento na velocidade de leitura e de habilidades cognitivas, além de incursões psi;

(iii) os reportes de casos de influências psicofisiológicas extremas (alguns exemplos extremos de placebo, sugestibilidade hipnótica com efeitos fisiológicos imediatos, impressões maternais, cura a distância, casos de crianças que alegam lembranças de vidas passadas e que carregam marcas de nascença correspondentes a marcas existentes na pessoa que alega ter sido sua vida prévia; casos experimentais de influência mental sobre sistemas vivos e de psicocinese).

(iv) os exemplos de desordem de múltiplas personalidades e de transe mediúnico que, em certos episódios, parecem desafiar as teorias convencionais da função global do cérebro [8];

(v) a incongruência da perspectiva neurocomputacional para explicar sujeitos prodígios e savantes;

(vi) o desafio das correntes principais da psicologia e da filosofia para explicar como o cérebro poderia ter intrinsecamente capacidades semânticas e assim sustentar estados mentais intencionais (tais como crenças e desejos), estabelecendo representações das coisas, tudo isso sem invocar por detrás das cenas o “usuário”[9];

(vii) as dificuldades para explicar o mecanismo da memória e, sobretudo, superar o quase (ou senão insuperável) obstáculo filosófico do raciocínio circular[10].

(viii) A realidade de fenômenos psi. Enquanto muitas pessoas bem instruídas do ponto de vista formal/institucional podem ficar desconfortáveis com esse assunto, a evidência hoje acumulada dos fenômenos de percepção extrassensorial e psicocinese é devastadora! Para um resumo, veja meu outro blog: www.debatepsi.com. A realidade de Psi simplesmente destrói a versão materialista convencional sobre a percepção humana.

Para o bem ou para mal, o que ocorre é que, na prática, “a maioria dos cientistas em atividade nunca considera a questão da ontologia”, observou Michael Levin (2000)[10]. E continuou: “a questão sobre se existe uma alma imaterial está simplesmente fora do âmbito das atividades diárias da mesa de trabalho de um físico ou de um neurobiologista. Porém, quando questionados, a maioria dos cientistas empacaria na possibilidade e continuaria sustentando que o mundo só contém coisas físicas”.

Isso acontece porque já ao longo de muitas gerações - por mais que possamos ter nossas crenças pessoais e sectárias, filosóficas e religiosas - a instrução formal que nos é passada na escola e nas universidades segue a corrente ortodoxa da ciência a qual prega que não somos nada mais do que máquinas feitas de carne, robôs biológicos com uma existência sem significado e que habitam um universo vazio de propósito. Essa perspectiva sobre a Realidade, infelizmente, é passada como se fosse um dado científico, quando, em verdade, é pura metafísica! Seja como for, muitos seres humanos têm sido bem adestrados, tais quais os cães de Pavlov, e o dogma vem se perpetuando.




[1]  Facing Up to the Problem of Consciousness. Journal of Consciousness Studies 2(3):200-19, 1995.
[2] Why Materialism Is Baloney: How True Skeptics Know There Is No Death and Fathom Answers to life, the Universe, and Everything. Iff Books (25 de Abril, 2014).
[3] “Se esses fenômenos [easy problems] fossem tudo o que há para a consciência, então a consciência não seria um grande problema. Embora ainda não se tenha nada próximo a uma explicação completa sobre esses fenômenos, nós temos uma ideia clara de como podemos explicá-los. É por isso que eu chamo estes problemas, de os problemas fáceis. Claro, "fácil" é um termo relativo. Obtendo os detalhes corretos, levará de um a dois séculos de custoso trabalho empírico. Ainda assim, há toda razão para acreditar que os métodos da ciência cognitiva e da neurociência vão ter sucesso”.
[4] Conferência Ingersoll, Human immortality: two supposed objections to the doctrine.
[5] Human Personality and its Survival of a Bodily Death.
[6] Irreducible Mind: Toward a Psychology for the 21st Century.
[7] Beyond Physicalism: Toward Reconciliation of Science and Spirituality. 
[8] Edward F. Kelly et. al., no artigo Empirical Challenges to Conventional Mind-Brain Theory, colocam: "apesar de os psicólogos reconhecerem que pessoas, com treinamento adequado, podem executar simultaneamente mais coisas do que elas costumam supor, essa generalização se aplica principalmente para coisas relativamente divergentes e visivelmente falha a medida que as tarefas simultâneas tornam-se cada vez mais complexas e mais similares. No entanto, um grande corpo de críveis evidências, algumas datadas do final do século XIX, demonstra que 'sistemas cognitivos', entidades psicológicas dissociadas e indistinguíveis de mentes conscientes ou personalidades completas como normalmente compreendemos, às vezes podem ocupar o mesmo organismo simultaneamente, continuando em suas variadas existências como se estivessem em paralelo, e em grande parte fora da consciência primária do dia-a-dia. Em essência, a estrutura que a psicologia cognitiva convencionalmente retrata como unitária, como instanciada dentro e identificada com uma organização particular dos sistemas cerebrais, pode ser funcionalmente dividida - aliás, dividida não "lado-a-lado" e levando ao isolamento de capacidades cognitivas normais uma da outra, mas "de cima para baixo", levando ao surgimento e concorrência - não alternância - de operação do que parecem ser dois ou mais sistemas cognitivos completos cada um deles incluindo todas as capacidades relevantes. Personalidades emergentes 'múltiplas' ou 'alteres' também podem amplamente variar, não só no comportamento, interesses e conhecimento, mas mesmo em relação às características fisiológicas não voluntárias, tais como defeitos visuais [Miller, S. D. (1989). Optical differences in cases of multiple personality disorder. Journal of Nervous and Mental Disease, 177, 480–486; Miller, S. D., Blackburn, T., Scholes, G., White, G. L., & Mamalis, N. (1991). Optical differences in multiple personality disorder: A second look. Journal of Nervous and Mental Disease, 179, 132–135] e suscetibilidades a alergias [Putnam, F. W. (1986). The scientific investigation of multiple personality disorder. In J. M. Quen (Ed.), Split MindslSplit Brains: Historical and Current Perspectives (pp. 109–125). New York and London: New York University Press]. Ainda pior, às vezes acontece que uma dessas personalidades parece ter o acesso direto à atividade mental consciente de uma ou de mais outras, mas não vice-versa” (Department of Psychiatry and Neurobehavioral Sciences. University of Virginia 210 Tenth St. NE Charlottesville, VA USA 22902 [versão online]). Dentro de cenário mediúnico, podemos citar, por exemplo, o caso da médium bostoniana Leonora Piper. Richard Hodgson relatou sobre a sessão de 18 de março de 1895, "...uma tentativa, muito mais bem sucedida foi feita quando eu estava acompanhado para o propósito pela senhorita Edmunds. A 'falecida irmã' dela escreveu com uma mão, [o comunicador] GP com a outra, enquanto [o controle] Phinuit estava falando - todos, simultaneamente, sobre diferentes assuntos" [Lodge, Oliver (1909). The Survival of Man, Moffat, Yard and Co., New York]. Adam Crabtree, Ph.D., em Irreducible Mind (2007), ainda esclarece que “a investigação de Frank Putnam sobre a fenomenologia e fisiologia do ‘processo de troca’ em personalidades múltiplas indicou que o estado-de-mudança que ocorre quando os indivíduos trocam de uma personalidade para outra tem características em comum com as transições de estado-de-consciência observadas em crianças, estados alterados de consciência e desordens psiquiátricas [...] Posso acrescentar aqui que existe uma óbvia e intrigante semelhança fenomenológica entre o processo de mudança em MPD e as mudanças de estado que ocorrem no início e término do transe e possessão mediúnicos. Parece haver boas razões para antecipar que todas essas manifestações de personalidades secundárias têm muito em comum e podem utilmente serem estudadas de formas paralelas”.
[9] Conforme já alertava o filósofo alemão Franz Brentano, a intencionalidade é a marca do mental. O conceito de intencionalidade em filosofia da mente pode ser melhor esclarecido como direcionalidade, ou seja, estados mentais – como crenças, desejos, ações e percepções - são direcionados para coisas e eventos além deles próprios. De modo conciso, podemos dizer que a intencionalidade intrínseca dos estados mentais funciona como um vetor semântico, capaz de “atribuir significado” a eles próprios e as demais coisas e situações do mundo. Por exemplo, quando eu “acredito que amanhã irá chover”, essa crença é dirigida a algo, ou seja, “na possibilidade de chover amanhã”. Por outro lado, ao utilizarmos vocábulos tipicamente mentalísticos para explicar aquilo que as máquinas fazem, verificamos que a intencionalidade é sempre atribuída pelo usuário (e nunca intrínseca ao objeto), justamente porque máquinas são incapazes de representarem, por si sós, alguma coisa. No conceito do filósofo John Searle, máquinas, a princípio, apenas manipulam símbolos formais, elas não “pensam”, não “acreditam”, não “desejam”, não se “arrependem”, não “compreendem”. Elas não carregam poderes semânticos de forma intrínseca, os quais são sempre atribuídos pelo usuário (ou pela mente dos programadores). Por exemplo, quando dizemos que o Word “compreende” erros ortográficos ou que o Google tradutor “sabe” traduzir palavras do inglês, na verdade, queremos dizer que o “Word corrige erros ortográficos ‘como se’ os compreendesse” ou o “Google tradutor traduz palavras ‘como se’ soubesse inglês”. “Compreender” e “saber” aqui são estados mentais atribuídos metaforicamente pelo usuário, i.e., não são inerentes aos sistemas artificiais, justamente porque máquinas não têm intrinsecamente capacidades semânticas, logo, não são capazes de produzirem e sustentarem estados mentais intencionais. Há muitas discussões sobre esse tema e, apesar de o mainstream lutar com todas as forças para explicar como cérebros poderiam criar representações das coisas por si próprios, no fundo de suas explicações sempre tem o “usuário” camuflado para atribuir significado.
[10] Conforme observou Sheldrake, “[...] para que um traço de memória seja consultado ou reativado, tem de haver um sistema de recuperação, e este sistema precisa identificar a memória armazenada que está procurando. Para isso é preciso reconhecê-la, o que significa que o próprio sistema de recuperação deve ter uma memória. Há, portanto, um regresso vicioso: se o sistema de recuperação é dotado de um armazenamento de memória, por sua vez, ele requer um sistema de recuperação com memória, e assim por diante ad infinitum” (Sheldrake, Rupert. The Science Delusion: Freeing the spirit of enquiry. London: Coronet, 2012).
[11] What is the Fundamental Nature of Consciousness? International Journal of Parapsychology, 11 (2), 123-141, 2000.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O Materialismo e a falácia hoc ergo propter cum hoc

O problema mente-cérebro consiste em explicar como mente e cérebro se relacionam reciprocamente. Uma solução definitiva para essa questão equivale a desvendar um colossal enigma existencial, talvez o mistério ontológico que mais importa ao homem: “o que nós somos?”. A resposta materialista para esse problema tem mediado, grosso modo, entre dois principais tipos de soluções:

1º tipo: uma boa parte dos materialistas entende que estados mentais – como crenças, desejos, pensamentos, percepção, experiência, etc. – são aquilo que o cérebro faz, de maneira que eles são causalmente dependentes dele. Aqui as analogias com sistemas computacionais rolam em abundância e teorias computacionais da mente são bem debatidas nas ciências cognitivas;

2º tipo: outra parcela considerável de materialistas pensa que aquelas pessoas “que acreditam na existência de pensamentos, crenças, desejos, motivações e outros estados mentais são vítimas de 'psicologia popular', uma atitude não-científica que, a seu devido tempo será substituída por explicações em termos de atividades dos nervos. Psicologia popular é uma espécie de superstição, como a crença em demônios, que ficará para trás com o avanço da compreensão científica" - analisou criticamente Sheldrake (2012)[1].

A diferença básica entre os tipos 1 e 2 de materialistas é que, em “2”, mente e cérebro são numericamente a mesma “coisa”. É dizer, há mais do que uma redutibilidade causal; há uma redutibilidade ontológica dos estados mentais a estados do cérebro. Falar de “mente”, de estados mentais, é apenas um modo supersticioso de discorrer sobre os processos neurofisiológicos que estão ocorrendo a cada milésimo de segundo em nossos sistemas nervosos. Agora, no tipo “1”, os estados mentais seriam algo distinto do cérebro, i.e., não haveria redutibilidade ontológica, porém seriam como uma propriedade de alto-nível emergente da atividade cerebral, mas que, de qualquer forma, é causalmente dependente desta.

Existem algumas nuances nesses dois tipos de perspectivas materialistas que rendem variadas discussões. Além disso, esses modelos metafísicos de materialismo têm suas inteligibilidades questionadas diante de críticas bem ponderadas e as quais, eventualmente, veremos em outras postagens. Seja como for, o crucial neste momento, a despeito das diferenças filosóficas entre os tipos “1” e “2” de materialismo, é que, em ambos, sem o cérebro não há que se falar em mentes. O cérebro, ou o corpo como um todo, é tudo o que há, de maneira que, nos parágrafos abaixo, tomarei o tipo “1” como modelo, especialmente porque ele tem rendido um maior número de seguidores.

Pois bem, o materialismo, certamente enquanto candidato para a solução do problema mente-cérebro, é uma hipótese possível de um ponto de vista da lógica. Em outras palavras: não existe nenhuma autocontradição na chance de meu cérebro produzir estados mentais. Contudo, o que é logicamente possível não quer dizer que também o seja empiricamente. Sendo assim, é importante questionar que tipos de evidências os materialistas têm para concluir que o cérebro cria a mente. 

O psicólogo, escritor e historiador da ciência estadunidense Michael Shermer, em artigo publicado na Scientific American Brasil, nos concede uma breve síntese a respeito das evidências científicas que – para ele – podem favorecer uma interpretação materialista para o problema mente-cérebro:

“[...]A hipótese de que o cérebro cria a consciência, porém, tem muito mais evidências a seu favor[...] Danos ao giro fusiforme do lobo temporal, por exemplo, provocam cegueira facial, e a estimulação dessa mesma área faz as pessoas verem rostos espontaneamente. Danos provocados por AVCs à região do córtex visual chamada V1 levam à perda de percepção visual consciente. Mudanças na experiência consciente podem ser medidas diretamente por RM funcional, eletroencefalografia e registros de neurônios isolados. Neurocientistas conseguem prever escolhas humanas a partir da atividade cerebral antes que o próprio sujeito esteja consciente delas. Usando apenas varreduras cerebrais, eles foram até capazes de reconstruir, no computador, o que alguém vê. Milhares de experimentos confirmam a hipótese de que processos neuroquímicos produzem experiências subjetivas"[2].

O que Shermer e muitos outros, contudo, deixam de observar é que mudanças comportamentais, de humor, cognitivas, perceptuais, mnemônicas, e outras modificações na personalidade, subsequentes ou simultâneas a alterações (na estrutura ou no funcionamento) cerebrais, não implicam necessariamente numa redutibilidade causal daqueles estados mentais a estados do cérebro. De fato, é logicamente possível e até mesmo de senso comum que duas coisas podem interagir com forte dependência funcional, no sentido de que ambas diretamente afetam o funcionamento uma da outra, reciprocamente moldando suas formas de expressão, sem que qualquer delas tenha criado, produzido ou dado causa a contraparte. Materialistas aqui caem na falácia hoc ergo propter cum hoc, ou falácia da correlação coincidente, ou seja, confundem paralelismo fundado numa causa comum com dependência causal, algo que já tinha sido observado por F. C. S. Schiller desde 1894 em seu monumental Riddles of the Sphinx: A Study in the Philosophy of Humanism.

Por exemplo, uma analogia contemporânea para ilustrar a existência de dependência funcional (e não causal) é a comparação da interação mente-cérebro àquela que acontece com os sinais que atingem um televisor. Todos estamos cientes que os sinais de imagens/sons não são produzidos por aquele equipamento, mas apenas transmitidos por ele. Certamente a ocorrência de defeitos no aparelho pode simultaneamente provocar a distorção da imagem, a perda de cores, chuviscos, sons ruidosos, etc., porém, isso, de nenhuma forma, significa que o televisor está criando os sinais. Tudo o que há é uma correlação coincidente entre alterações estruturais no equipamento e as formas como aqueles sinais são expressados, e tudo isso ocorre sem qualquer dependência causal, mas tão somente funcional. Existe dependência funcional porque os sinais podem sofrer inúmeras formas de modelagem ao atravessar os mais variados tipos de equipamento.

Na perspectiva de uma mente transmitida pelo cérebro pode acontecer algo parecido. A “imagem” de como a mente irá ser transmitida através do cérebro, tal como a imagem que aparece na tela de seu televisor, é o que você pode chamar de ‘personalidade ordinária de um indivíduo’ ou seu ‘Eu habitual’, mas que de nenhuma forma representa sua unidade final e mais profunda, da mesma forma que a imagem exibida na tela da televisão não pode ser identificada como o sinal decomposto pelo equipamento. De fato, o mesmo sinal pode produzir imagens variadas (nível de saturação, brilho, cor, resolução, acompanhadas por ghosting, screen tearing, backlight bleeding, etc.), dependendo do tipo de equipamento. Semelhantemente, a “imagem” do sinal mental, sem dúvida, dependeria, nessa perspectiva, da estrutura e do funcionamento corporal.

A filósofa Patricia Churchland, em entrevista a Alex Tsakiris (2014)[3], usa um raciocínio semelhante ao de Shermer. Quando indagada pelo entrevistador sobre a hipótese de a consciência ser fundamental e ontologicamente independente do cérebro, Churchland diz que “um dos problemas com essa abordagem é que não podemos entender porque tomar um medicamento, por exemplo, deve mudar sua consciência”. Agora, tanto Patricia quanto Shermer são pessoas muito bem instruídas, inteligentes e inteiradas sobre o tema para ignorar o fato de que suas abordagens apenas focam num dos lados da relação mente-cérebro: aquele em que o sistema físico parece ser o gatilho da manifestação fenomenológica. Assim, infelizmente o que vejo é que há uma argumentação ad nauseam por parte de materialistas no que diz respeito à falácia da correlação coincidente.

Há, porém, um outro lado da moeda que não pode ser deixado de lado, sob pena de nos contentarmos com uma resposta muito incompleta para o problema mente-cérebro. Ora, existem diversos exemplos de influências psicossomáticas, tais como o placebo, psiconeuroimunologia, neurofeedback, complicações fisiológicas disparadas por estados emocionais, entre outras formas de psicossomatismo, em que o mental parece ser o elemento desencadeador subjacente, porém, isso de nenhuma forma autoriza-me a concluir no sentido inverso, i.e., de que a mente cria ou produz o corpo. Entender que a mente emerge do funcionamento cerebral, porque ela pode ser diretamente afetada por ele é assumir a existência de dependência causal, quando a evidência permite que se conclua apenas por uma espécie de dependência funcional. Conforme comentou o Nobel Henri Bergson em seu discurso presidencial para a Society for Psychical Research (1914):

"[...]se a consciência não é uma função do cérebro, pelo menos, o cérebro a mantém fixa sobre o mundo em que vivemos; ele é o órgão de atenção à vida. É por isso que uma modificação cerebral, ainda que ligeira, - uma passageira intoxicação por álcool ou ópio, por exemplo (mais ainda uma intoxicação duradoura como aquelas que, sem dúvida, frequentemente provocam insanidade), pode promover uma perturbação completa da vida mental"[4].

Você pode estar, no entanto, inclinado a insistir que já temos muitos dados neurofisiológicos provenientes de estudos de neuroimagem, eletroencefalografia e, entre tantos outros, os quais já nos fornecem muitas respostas sobre os processos neurobiológicos responsáveis pela emergência de diversas faculdades mentais, tais como a percepção, memória, cognição, vontade e experiência subjetiva. Os recentes trabalhos em neurociência, por exemplo, têm se orientado na pesquisa dos correlatos neurais da consciência (CNCs). Christof Koch, aclamado professor de biologia cognitiva e comportamental do California Institute of Technology, declarou em 2007 que “toda percepção consciente está associada a uma coalizão específica de neurônios que agem de maneira específica”. E nutre esperanças de que “em breve, a habilidade crescente dos neurocientistas de manipular populações de neurônios nos permitirá deixar de observar que um estado consciente particular está associado a alguma atividade neuronal para passar a identificar a relação causal – observando que uma dada população é parcial ou completamente responsável por um estado consciente[5].

Agora, independente de qual seja o mecanismo neurofisiológico subjacente à consciência, não podemos passar por cima do fato de que, mesmo havendo o mapeamento cerebral de todos os CNCs, isso não implica, necessariamente, uma relação de dependência causal de estados mentais a estados do cérebro. Essa assunção nos conduz ao erro lógico de raciocínio que estamos salientando aqui e que devemos evitar. Correlação entre eventos não implica causação e, ainda que haja uma relação matematicamente perfeita entre eventos cerebrais e mentais -o que está muito longe de acontecer- isso não autoriza afirmar a existência de uma dependência causal, mas tão somente funcional.

Então vemos que a esperança de Koch, infelizmente fundada numa lógica mal empregada, reflete tão só mais um dos anseios de pessoas que vivem herméticas num materialismo promissório e pouco elucidativo a respeito dos problemas mais básicos: como funciona a relação mente-cérebro? Existe realmente uma relação de dependência causal ou somente funcional? O que é, quando, por que e como surgiu a experiência consciente?




[1] The Science Delusion. Coronet Books; First edition & printing in this form edition.
[2] A mente da tia Millie: a morte cerebral significa que experiências subjetivas são neuroquímicas <http://www2.uol.com.br/sciam/artigos/a_mente_da_tia_millie.html>. Acessado em 31/10/2015.
[3] Why Science Is Wrong…About Almost Everything. Anomalist Books, San Antonio.
[4] Proceedings of The Society for Psychical Research, LXVIII, Janeiro de 1914.
[5] Como a Consciência se Manifesta? Scientific American Brasil (edição 66, Nov. 2007).

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O Materialismo e a negação da realidade do mundo exterior

Na prática, todos nós somos realistas e acreditamos na realidade do mundo exterior tal como ele é percebido por nós. Todos nós acreditamos que o monitor visto a nossa frente está a alguns centímetros distante de nossos olhos, que cores e formas existem tais como a percebemos, que os objetos do mundo exterior estão onde realmente parecem estar, i.e., “fora de nós”, etc. Contudo, se você é um materialista, sabe (ou deveria saber) que – em teoria – o materialismo nega a realidade do mundo externo, i.e., nega que todas as outras coisas ou pessoas são percebidas por ‘você’ como elas realmente são.

O filósofo David Ray Griffin (1997)[1] observa que isso não decorre do materialismo per se, mas porque o materialismo assume a doutrina do sensacionismo, ou seja, de que só podemos conhecer o mundo através dos dados que chegam aos nossos cinco sentidos sensoriais, não podemos observar o mundo como ele realmente é, mas apenas como ele é traduzido por nosso sistema nervoso. Nas palavras de Bernardo Kastrup (2014):


 “O ‘mundo real’ externo do materialismo é supostamente uma amorfa, incolor, inodora, inaudível e intátil dança abstrata de campos eletromagnéticos desprovidos de todas as qualidades da experiência. Ele é supostamente mais parecido a uma equação matemática do que algo em concreto” [2]

O psicólogo Charles Tart (2012) nos concede um exemplo sobre a nossa percepção visual que ajuda a clarificar essa limitação do materialismo enquanto teoria:

“Suponha que você está olhando para um incêndio. Você o experimenta como de cor vermelha; você sente o calor dele na sua pele. Se o fogo está ameaçando você ou seus pertences, você o percebe como perigoso. Numa outra situação e estado de espírito você o percebe como bonito. Estas parecem ser as percepções diretas da realidade externa, mas nossa moderna compreensão do funcionamento cerebral nos diz que elas não são realmente diretas, mas mediadas por muitos processos intermediários, cada um dos quais pode alterar a natureza do que percebemos.
Considere a experiência do fogo como vermelho. Nós acreditamos que entendemos o mundo físico bem o suficiente para termos certeza de que o fogo está emitindo radiação eletromagnética. Parte desta radiação está num alcance vibratório capaz de estimular o olho humano, de modo que a radiação nesta faixa é chamada de luz. A luz de uma frequência em particular não tem quaisquer atributos de cor; é apenas a luz vibrando naquela faixa em particular. Numa descrição mais precisa, é apenas radiação eletromagnética: chamá-la de "luz" é falar sobre luz em relação aos seres humanos.
Esta radiação eletromagnética passa através da lente do olho. A lente pode impor limitações sobre sua percepção; não vai passar, por exemplo, a frequência mais rápida de radiação eletromagnética que chamamos de ultravioleta. Não há, no entanto, problemas significativos com a passagem da radiação do fogo que mais tarde seria chamada de luz vermelha. A radiação atinge estruturas especiais sobre a retina, os cones, que são os responsáveis ​​pela visão das cores. A energia da luz estimula mudanças eletroquímicas nos cones, de tal forma que a frequência específica da luz que os atinge envia um padrão específico de impulsos eletroquímicos, impulsos nervosos, que viajam até os nervos especiais do olho e para o cérebro. O cérebro modifica esses impulsos nervosos de formas complexas que nós não entendemos completamente, e, o que é o maior mistério de todos, o padrão final de impulsos eletroquímicos no cérebro resulta em nossa percepção/experiência do fogo ser vermelho. É a estrutura e a atividade do cérebro e os olhos que criam a experiência de ser vermelho, ao invés do vermelho ser uma propriedade do mundo exterior. Você provavelmente já viu essas fotografias processadas ​​por computador estranhamente coloridas tiradas por satélites de sensoriamento terrestre. A água pode aparecer com tons de vermelho, a vegetação, com tons de azul, a terra nua com tons de verde. Essas fotografias são geralmente rotuladas como de 'falsa cor'. Mas não existe nada de falso num sentido absoluto sobre aquelas cores. Processamento computacional de fotografias envolve exatamente o mesmo tipo de simulação arbitrária do mundo externo que o seu cérebro realiza. Seu cérebro poderia muito bem, e tão utilmente, construir o fogo como a experiência de verde ou azul, no lugar da experiência de vermelho. O processo de construção/simulação nos permite sobreviver no mundo quando há uma correspondência regular e confiável entre alguma característica do mundo exterior e sua percepção construída sobre a mesma. Desde que os incêndios normais sempre fossem verdes, estaria tudo bem [3]

Em resumo, estímulos físicos atingem nossos canais sensoriais, são “reescritos” na forma de impulsos eletroquímicos e sobem nosso sistema nervoso periférico até o cérebro onde todos os dados são integrados e acontece a grande mágica - por assim dizer - da experiência sensorial. Em cada uma dessas etapas, é um ‘ato de fé’ pensar que o mundo externo, tal como ele realmente é, está sendo perfeitamente traduzido pelo processo de construção/simulação que é realizado por nosso corpo.

Existe, no entanto, alguma razão para acreditarmos que o mundo simulado em nossas cabeças é uma cópia perfeita da realidade exterior? Kastrup nos dá algumas razões para abdicarmos dessa crença materialista. Em primeiro lugar, para a nossa sobrevivência física, a teoria da evolução de Darwin não favorece a perfeição das representações interiores sobre a realidade exterior, mas apenas que haja alguma combinação daquilo que é simulado pelo cérebro com o objeto percebido do mundo real externo. Conforme ele pontua – “se um tigre está se aproximando de você, é útil ver algo como um tigre real, e não uma outra alucinação não modulada e assemelhada a um sonho”. No entanto, esclarece que sua própria pesquisa sobre redes neurais artificiais mostra que, ao se criar uma representação interna, é útil decotar algumas partes dos estímulos externos, pois a informação completa é muitas vezes confusa e abafa as pequenas partes da realidade que realmente interessam.

De fato, em termos de vantagens adaptativas, no lugar de favorecer uma tradução plena e fidedigna do mundo exterior, a evolução beneficia uma economia de energia dos sistemas biológicos, para processar somente aquilo que realmente interessa a sua sobrevivência, sem desperdiçar tempo, atenção e recursos no processamento de informações sem direta utilidade para a perpetuação do organismo em seu meio. Em termos de seleção natural, seria desvantajoso, e até mesmo mortal, que um organismo perdesse tempo em copiar o mundo externo em todas as suas partes, perdendo a atenção em detalhes não tão relevantes e reduzindo, assim, sua velocidade de resposta aos estímulos exteriores.

Em segundo lugar, você pode argumentar que a ciência nos proporciona instrumentos científicos capazes de refinar nossas percepções e de nos fazer perceber partes da realidade exterior que normalmente estão escondidas para nossos sentidos. O problema é que esses instrumentos envolvem o mesmo tipo de simulação arbitrária que o seu cérebro. Trazendo a este ponto a parte final da citação de Charles Tart: por qual lógica você entende que sua representação das cores é mais perfeita do que a representação dos satélites de sensoriamento terrestres?

No mesmo sentido, Kastrup:

“Mesmo os instrumentos científicos que ampliam o âmbito de nossa percepção sensorial – como os microscópios que nos permitem ver além das menores características que nossos olhos podem discernir, ou sensores de luz infravermelha e ultravioleta que podem detectar as faixa de frequência para além das cores que podemos ver – são fundamentalmente limitados a nossa estreita e distorcida janela dentro da realidade: eles são construídos com materiais e métodos que estão restritos à cópia editada da realidade em nossos cérebros. Como tal, toda a ciência ocidental e a filosofia, antiga e moderna, do atomismo grego à mecânica quântica, de Demócrito e Aristóteles a Bohr e Popper, deve ter sido e ainda é fundamentalmente limitada à cópia parcial e distorcida da realidade em nossos cérebros que o materialismo implica”.

Assim, dentro de uma perspectiva materialista, experienciamos um mundo simulado em nossas cabeças e somos eternamente incapazes de saber se essa simulação é uma tradução fidedigna da realidade exterior ou uma grande ilusão compartilhada por nossas limitadas máquinas corporais. O biólogo inglês Rupert Sheldrake (2012) observa que:

“A ideia de experiências visuais como simulações dentro de cabeças leva a consequências estranhas, tais como a que o filósofo Stephen Lehar apontou. Isso significa que, quando eu olhar para o céu, o céu que eu vejo está dentro da minha cabeça. Meu crânio está além do céu![4].

No entanto, ‘apesar das teorias de cientistas acadêmicos e filósofos, a maioria das pessoas não aceita que todas as suas experiências estão localizadas dentro de suas cabeças. Elas pensam que estão onde parecem estar, fora de suas cabeças”, observou Sheldrake.

Griffin chega a ser provocativo. Pontua que a doutrina do sensacionismo (que é pressuposta pelo materialismo) leva, em teoria, ao solipsismo, a doutrina que 'Eu' realmente não sei se algo, além de mim, existe tal como é em si mesmo. Kastrup também atiça os materialistas. Destaca, no que diz respeito a realidade do mundo exterior, que o materialismo consegue ser ainda mais abstrato e metafísico do que os reinos espirituais postulados por tradições religiosas!

“Assim, segundo o materialismo, a única maneira que você pode experimentar um mundo fora de sua cabeça é se os sinais do mundo exterior penetrarem o seu cérebro através dos órgãos dos sentidos e, então, de alguma forma modularem a criação de uma alucinação cérebro-construída que corresponde ao mundo externo. Portanto, sua vida inteira - toda a realidade que você jamais pode conhecer diretamente - é apenas uma 'cópia' interna da 'real realidade'.' Nada que você vê, toca, cheira, sente ou escuta em torno de você agora é uma apreensão direta da 'realidade'. Em vez disso, é tudo uma espécie de cópia interna gerada pelo seu cérebro. O Materialismo requer, portanto, uma duplicação de toda a realidade: ele pressupõe um universo 'externo' abstrato e improvável ao lado do conhecido, concreto e inegável universo da experiência direta. Nenhum 'reino espiritual' postulado por tradições religiosas do mundo é tão abstrato ou metafísico como a realidade 'externa' do materialismo, pois esta última está, por definição, para sempre além da experiência. Alguém é forçado a se perguntar se isso realmente pode ser a mais simples, a mais parcimoniosa e a mais razoável explicação metafísica para as nossas observações”.




[1] Parapsychology, Philosophy and Spirituality: a postmodern exploration. Ed. State University of New York
[2] Why Materialism Is Baloney: How True Skeptics Know There Is No Death and Fathom Answers to life, the Universe, and Everything. Iff Books (April 25, 2014). Bernardo Kastrup tem um Ph.D. em engenharia da computação com especializações em inteligência artificial e computação reconfigurável. Ele trabalhou como cientista em alguns dos laboratórios de pesquisa mais importantes do mundo, incluindo a European Organization for Nuclear Research (CERN) e a Philips Research Laboratories (onde o "Efeito Casimir" da Teoria Quântica de Campos foi descoberto).
[3] Waking Up: Overcoming the Obstacles to Human Potential.
[4] The Science Delusion. Coronet Books; First edition & printing in this form edition.