quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O estabelecimento do paradigma materialista-mecanicista na ciência: um resumo histórico de sua imposição ideológica como teoria final para toda a realidade

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A doutrina do materialismo é uma das implicações de considerar que a natureza é inteiramente explicada em termos de física clássica, i.e., que todos os eventos são causados pela interação entre as partículas de matéria e campos de força. Essa posição tornou-se  predominante  em todos os ramos científicos, inclusive nas ciências cognitivas, constituindo a base metafísica acerca da realidade que é adotada por nossa educação formal acadêmica e institucionalizada. Nas linhas abaixo irei resumir o processo secular de construção da atual concepção materialista, que nos leva ao melancólico destino de não sermos nada além do que máquinas feitas de carne sem nenhum poder de autodeterminação. Será demonstrado como essa metafísica de mundo estendeu dogmaticamente o mecanicismo da física clássica como uma descrição completa de todos os fenômenos da realidade, inclusive os seres humanos.
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Durante a idade média (séculos V a XV), o pensamento crítico da sociedade ocidental era materializado através da escolástica, método através do qual se buscava conciliar razão e fé cristã, subordinando a primeira à última. Isso é claro nos escritos de Santo Agostinho, como também penso que seja indubitável nos de São Tomás de Aquino, ainda que tenha incorporado elementos da filosofia aristotélica. No pensamento escolástico imperavam os argumentos de autoridade, principalmente aqueles fundados na Bíblia, nos líderes clericais e em alguns filósofos neoplatônicos, como também em Aristóteles e Ptolomeu. Na verdade, a “razão escolástica” poderia ser muito bem identificada como um viés metafísico direcionado a provar e exaltar a existência de Deus.

Com a transição para a idade moderna, especialmente entre os séculos XVI e XVIII, o intelectualismo Europeu passou por uma radical transfiguração. A essa profunda reforma de pensamento no ocidente, o filósofo e historiador Alexandre Koyré (1892-1964) batizou de Revolução Científica, nome a que todos nós estamos habituados de ler nos livros de história geral. Em oposição ao teocentrismo e à submissão da reflexão à fé cristã que marcaram a idade média, a humanidade começou a direcionar-se cada vez mais a uma perspectiva antropocêntrica e racionalista do universo. Diversas causas contribuíram para isso, sendo as principais o renascimento cultural[1], o desenvolvimento da imprensa[2], a reforma protestante[3], o hermetismo[4] e o avanço da física. O baixo senso crítico da sociedade teocêntrica medieval começava a perder espaço para o homem crítico e cada vez mais cético, especialmente entre as pessoas com instrução. Como o nobelista francês Charles Richet (1922) uma vez pontuou:

"Em todos os tempos os homens verificaram fatos singulares, irregulares, imprevisíveis, que se misturavam com os acontecimentos ordinários da existência quotidiana. Então, não podendo encontrar uma explicação racional, supuseram a intervenção de forças sobrenaturais, bem como a ação de Deus ou de Demônios todo-poderosos.
A
pouco e pouco, com o progresso dos nossos conhecimentos, a fé nessas ingerências
, divinas ou demoníacas, nos nossos acanhados quefazeres, perdeu terreno. Quer se trate de uma aurora boreal, quer de um eclipse, quer de um cometa, quer até de uma tempestade, não vemos atualmente nisso senão um fenômeno natural de que já conhecemos algumas leis. Quer se trate de epilepsia, quer se trate de ataque histérico, não apelamos mais para Hércules nem para Satã"
[5].

Nesse ambiente, em 1564 nasceu Galileu Galilei (1564-1642), precursor da mecânica newtoniana, enunciador do princípio da inércia e quem deu os passos iniciais sobre o movimento uniformemente acelerado. Galileu, além de propalar e ensinar o heliocentrismo de Copérnico, o que lhe rendeu a suspeição de heresia perante o Tribunal do Santo Ofício, foi um defensor veemente do empirismo, avançando o intelecto humano para além do sistema de lógica aristotélica. É famosa, por exemplo, a história que Galileu jogou, do alto da torre de Pisa, uma bola de ferro e outra de madeira, para provar que objetos pesados e leves, na ausência da resistência do ar, caem na mesma velocidade, demonstrando, assim, o erro aristotélico. Francis Bacon (1561-1626) foi outro destacado empiricista e, provavelmente, o primeiro a desenvolver uma metodologia para o raciocínio indutivo. Mais tarde, o ideólogo do liberalismo John Locke (1632-1704) apresentou-se como o principal defensor do método empírico.

Concomitante a Galileu, René Descarte (1596-1650) discursava em seu Método a regra da Análise através da decomposição das coisas em subunidades mais simples, prestigiando a metodologia reducionista. Descarte era um rigoroso mecanicista, o que é muitas vezes ignorado, como também um autêntico determinista. Thomas Hobbes (1588-1679), outro contemporâneo de Galileu, igualmente enaltecia o mecanicismo em detrimento à escolástica e à teleológica defendida por Aristóteles. No ápice da revolução científica, mais precisamente em 1687, o Principia de Newton é publicado. Nessa obra, Issac Newton (1643-1727) propala suas famosas leis para o movimento dos corpos, fundamenta a mecânica clássica e a lei da gravitação universal, demonstrando, ainda, as leis de Kepler para o movimento dos planetas.

Todos esses lumiares, considerados os fundadores do intelectualismo moderno, ressoaram para uma nova abordagem de pensamento crítico, baseada em uma filosofia agora experimental, mecanicista e determinista acerca da natureza. No auge da revolução científica podemos dizer que já havia ficado assentado que a experimentação era a nova base para o conhecimento e que a dinâmica do mundo físico seguia certas características mecanicistas, a saber: (i) funciona segundo leis invioláveis; (ii) comporta-se de forma previsivelmente determinista; (iii) e é explicável em termos de causalidade por contato. Até mesmo Newton expressamente negou a possibilidade de influência causal a distância, em que pese, pelo menos à época, a gravidade aparentar ser uma misteriosa ação à distância. Seja como for, ele preferiu não hipotetizar a respeito e ficar apenas com a descrição matemática em sua famosa equação da gravitação universal.

Como a maioria dos pensadores modernos, inclusive Newton e Descartes, reconhecia que a mente humana (os animais eram considerados meros autômatos!) e a divindade não ficavam subordinadas ao binômio mecanicismo-determinismo da nova filosofia (experimental), elas foram deixadas do lado de fora da natureza e, portanto, da própria "ciência da modernidade", quase (ou senão completamente) identificada com a física clássica. Nesse sentido, o filósofo da University of Oxford, Chris Carter (2010)[6], observa que um dos dois modos dos filósofos naturais lidar com os problemas da consciência e do livre arbítrio foi assumir que esses fenômenos "ficavam do lado de fora do domínio da física". O outro modo adveio um tempo mais tarde, durante o iluminismo no século XVIII, e constituiu-se em considerar a física clássica como uma descrição de todos os fenômenos do mundo, inclusive os seres humanos. A esse ponto voltaremos mais adiante.

Durante a revolução científica, podemos dizer que a doutrina materialista da era clássica ainda não havia renascido como "a nova worldview social". De fato, o paradigma metafísico da modernidade repousou em uma espécie de dualismo, i.e., de um lado, a natureza (funcionando tão mecânica e deterministicamente quanto os ponteiros de um relógio são movimentados por suas engrenagens), e de outro, a mente ou alma humana e o “grande relojoeiro”, Deus, responsável pelo primeiro movimento do Cosmos. Newton, por exemplo, tinha a convicção de que a mecânica celeste seguia a gravitação universal, mas também que Deus podia ocasionalmente ajustar as órbitas dos planetas. Galileu, precursor da mecânica newtoniana, morreu como um teísta cristão. Descartes, por sua vez, acreditava que Deus interviu na natureza apenas para criá-la. Após a Criação, o universo funcionava deterministicamente como um perfeito mecanismo de moção vertical, não necessitando de outras intervenções divinas. Descartes era tão mecanicista que acreditava que a memória, a imaginação e as paixões humanas eram explicadas pelo maquinário arranjo dos órgãos! É conveniente lembrar que todos esses três fenômenos são ainda recalcitrantes a qualquer teoria mecanicista. Os dois últimos são espécies de experiência subjetiva ou estados fenomenais, algo que um mecanicista de hoje sequer é capaz de rascunhar como uma explicação para eles poderia parecer [para mais detalhes, veja ‘
A experiência consciente em David Chalmers: uma pedra no sapato do materialista’].

Pois bem, esse paradigma metafísico da modernidade, conforme observa o filósofo David Ray Griffin (1997)[7], Claremont Graduate University, ao tratar da dogmática exclusão da causalidade a distância na física, não foi acidental e nem resultado de um desinteresse na pesquisa pela verdade, mas consequência de fatores sociais e teológicos envolvidos. Numa época de crescente zelo por explicações racionais e naturais, Griffin diz que a filosofia mecânica foi considerada por muitos como a melhor defesa do cristianismo contra a interpretação naturalística dos milagres, pois, se nenhuma influência causal a distância pode ocorrer naturalmente, os milagres descritos na bíblia foram verdadeiros milagres, i.e., eles requereriam a intervenção supernatural de Deus. Acrescenta ainda que a proscrição da influência a distância contribuiu para desmistificar a onda de bruxaria[8] que aterrorizou a Europa nas idades medieval e moderna. Nesse contexto, nem a mente humana poderia agir a distância, o que trazia alívio diante da crença histérica e epidêmica na ação de bruxas e feiticeiros com suas “simpatias” e “encantamentos”.

Griffin ainda destaca que a posição dominante entre aqueles dualistas da modernidade,

“[...] tal como articulado pelo ‘racionalista’ Descarte como também pelo ‘empiricista’ Locke, era que a mente pode perceber e agir sobre o mundo somente através do seu cérebro: a teoria sensacionista da percepção dizia que a mente pode perceber apenas por meio de seu sistema físico sensorial; a correspondente teoria da ação dizia que a mente pode agir apenas por meio de seu sistema motor-muscular. Ambas percepção e ação, portanto, ocorreriam apenas através de cadeias de causas contíguas. Não poderia existir nenhum conhecimento extrassensorial do mundo e nenhuma ação psicocinética nele”.

Dessa forma, podemos até mesmo acrescentar que a cosmovisão de mundo iniciada a partir da modernidade sofreu influxos de viés teológico que também proibiam intencionalmente a existência de fenômenos psíquicos tais como aqueles estudados pela parapsicologia a partir da segunda metade do século XIX.

Algumas décadas depois, já no século XVIII, os philosophes do iluminismo francês, inclusive Denis Diderot e Voltaire, bastante influenciados pela física newtoniana, revitalizaram o materialismo do período clássico, de Demócrito e Epicuro, só que com uma grande diferença: o materialismo passou a ser propalado como tendo um suporte científico. Assim, muitos filósofos franceses, tais como Paul-Henri-Dietrich d'Holbach's (1723–1789), George Louis Leclerc, comte de Buffon (1707–1788) e Julien Offroy de La Mettrie's (1709–1751), influenciados pelo desenvolvimento da física da era pré-iluminista, generalizaram o mecanicismo para explicar todos os aspectos da realidade, inclusive a consciência e o livre-arbítrio. Conforme pontua Carter:

A antiga filosofia do materialismo foi considerada a ter uma base científica. Cientistas e filósofos agora tinham boas razões para acreditar que os aspectos físicos da realidade eram causalmente fechados: o físico poderia afetar o mental, através do seu efeito sobre o cérebro, tais como a experiência da dor depois de tocar uma chama, mas o mental não poderia afetar o físico. Tirar as mãos da chama era visto agora pelos materialistas como uma resposta pré-determinada de um autômato. Pensamentos, sentimentos e intenções eram agora vistos como causalmente redundantes: agora era argumentado que a consciência não serve para nada e que o nosso sentimento intuitivo de livre-arbítrio é apenas uma ilusão”.

Griffin acrescenta que a posição de Descarte e Locke no sentido de que a mente somente pode operar através do cérebro não foi arbitrária, uma vez que partiu da proibição de ação a distância na física. Como toda a causação na física, à época, deveria ser por contato (o que hoje sabemos ser falso, graças ao princípio empiricamente bem demonstrado da não-localidade), eles entenderam que a mente somente poderia interagir através do cérebro. Em todo caso – acrescenta Griffin – esse arbitrário argumento sensacionista da percepção e da ação voluntária colapsou, imprevisivelmente, no materialismo da França iluminista no século XVIII, tal como vimos acima, e depois (na metade do século XIX), nos países de língua inglesa, em grande parte devido ao trabalho de Darwin.  Sobre o cenário inglês, que certamente refletia a percepção da Europa durante o período vitoriano, a historiadora londrina Renée Haynes (1982)
[9]  observa:


"O século XIX viu neste país o crescimento entre os intelectuais de uma determinada Nobre Melancolia, num primeiro momento, sincera e espontânea, em seguida, cultivada e, finalmente, na moda. Ela tinha suas raízes, creio eu, na aceitação consciente ou inconsciente de uma analogia entre os processos da vida e os triunfos mecânicos da revolução industrial. Isso provavelmente começou com a afirmação de Descartes de que os animais são autômatos. Em seguida, juntamente com o surgimento e o desenvolvimento da tecnologia - teares mecânicos, fábricas, estradas de ferro - emergiu-se e desenvolveu-se um hábito de considerar todo o Universo como uma vasta máquina complexa. Um teólogo, de fato, comparou-o com um relógio inventado e ajustado pelo Criador. A teoria da evolução de Darwin não somente contradisse as crenças daqueles cristãos que aceitaram uma interpretação literal da Gênesis e de um calendário cósmico com base em engenhosos cálculos do Arcebispo Ussher de que o mundo havia sido criado a 4004 AC, às quatro horas da tarde. Ela argumentava que tudo vem a existir através de sorte ou de um azarado acaso; que a máquina universal não teve nenhum inventor, nem mecânica, nem propósito; e que até mesmo a consciência humana sobre sua existência era um subproduto sem sentido de seu funcionamento. A consciência era um epifenômeno, o pensamento era como se fosse o suor do cérebro".

Griffin (p. 20/23), fazendo coro a Carter, complementa:

“Com este desenvolvimento, a ‘mente’ ficou completamente fora da natureza, sendo puramente uma função do cérebro (como o notável Hobbes tinha sugerido). Ela ficou, portanto, sujeita a mesma proibição de ação a distância tanto como o resto da natureza”. [...] Uma característica central deste materialismo é seu completo reducionismo ontológico. Todos os ‘todos’ são assumidos a serem redutíveis, pelo menos em princípio, às suas partes mais minúsculas. Em conformidade, não só a mente é redutível ao cérebro, o que significa que não tem nenhum poder sobre e além das suas bilhões de células cerebrais, mas as células do cérebro são, por sua vez, redutíveis às suas organelas, que são redutíveis às suas macromoléculas, e assim por diante. O dogma resultante é que tudo o que acontece no mundo é, em princípio, explicado em termos de uma ou mais das quatro forças reconhecidas pela física: a gravidade, o eletromagnetismo, e as forças fraca e forte no núcleo do átomo. As composições de Mozart, o ensinamento de um Buda, a devoção de uma Madre Teresa, tudo isso é dito finalmente para ser explicado, em princípio, por meio das interações destas forças elementares. A partir dessa perspectiva, a ideia de que a mente humana tem um poder próprio além do cérebro, poder com o qual ela pode diretamente perceber e agir sobre as coisas além do corpo, dificilmente pode ser admitida”.

E Carter depois acrescenta:

No século XVIII, as aversões às guerras religiosas, a caça às bruxas e a Inquisição ainda estavam frescas nas mentes das pessoas, e a nova cosmovisão científica [o materialismo mecanicista], espalhada por homens como Diderot e Voltaire, pode ser vista parcialmente como uma rejeição contra a dominação eclesiástica sobre o pensamento que a Igreja manteve por séculos”.

Griffin, por sua vez, adiciona que a reflexão filosófica a respeito de fenômenos psíquicos [sobre coisas como telepatia e psicocinese] é tão difícil em nossa cultura porque as duas versões de mundo moderno: o dualismo sensacionista cartesiano, adotado por cristãos conservadores a fundamentalistas, e o materialismo-mecanicista, prestigiado pela comunidade científica, são visões ainda predominantes, sendo que ambas rejeitam dogmaticamente a ação mental a distância.

A par de tudo o que foi delineado acima, não fica agora difícil entender que a ascensão do materialismo-mecanicista como uma descrição completa para a inteira realidade, de estrelas e cometas a ‘você’, é muito mais resultado de uma virada ideológica no pensamento crítico ocidental contra a tirania da Igreja, a superstição e o baixo senso crítico que assolavam todos os campos da atividade humana antes da modernidade, do que propriamente uma questão de evidência. Como quase toda reação em tempos de aflição, a resposta muitas vezes não vem na medida, talvez como uma garantia para que o status quo ante nunca mais se estabeleça. Com o materialismo não foi diferente. Ainda que diversas pressuposições metafísicas da física clássica não tivessem caído (tais como o localismo e o determinismo já destronados pela mecânica quântica), simplesmente não se segue tão facilmente que coisas como experiências sensoriais e sensações corporais; o imaginário mental; estados emocionais (alegria, tristeza, raiva, etc.); experiências de pensamento (de refletir e decidir, de sentir liberdade e de ter responsabilidade pessoal, etc.); e a sensação de autoconsciência, sejam explicáveis em termos da interação de partículas de matéria e campos de força tal como na física newtoniana.

Nos dias correntes, a maioria dos cientistas não se preocupa com questões de ontologia e serve a profissão pragmaticamente. Por outro lado, dentro da comunidade de pensadores críticos contemporâneos (cientistas, filósofos e outros articuladores da opinião pública) existem algumas pessoas que acreditam ser os sucessores dos iluministas franceses na defesa da razão contra o dogma e a superstição residuais da era medieval. Esses autoaclamados guardiões da racionalidade, tais como humanistas seculares e alguns militantes ateus, ignoram, todavia, o fato que defendem o materialismo-mecanicista de forma tão messiânica quanto fundamentalistas religiosos. Eles geralmente são pessoas com boas relações em certos seguimentos da mídia; reúnem-se de forma corporativa sob as mais diversas denominações (comitê, associação, sociedade, etc.); classificam-se como 'céticos' (quando o correto conceito de ceticismo é a dúvida racional, e não a negação apriorística); são também muito bons em retórica e desdenham com muita criatividade daqueles que acreditam no valor de face de temas como experiências de quase-morte, mediunidade, reencarnação e fenômenos psíquicos; além de, claro, beneficiarem-se do fato de a grande massa ser tão desinformada quanto eles sobre a qualidade da evidência de eventos que lançam um desafio real à metafísica materialista.

Agora, esse perfil nem de longe é acidental, mas constitui uma verdadeira estratégia para vencer debates, evitando a todo custo não penetrar em discussões sobre a evidência dos fenômenos que criticam. Isso por uma simples razão: a maioria dos materialistas militantes não conhece (ou sequer lê) os relatórios de casos e experimentos que podem contradizer sua 'fé na matéria' e muito menos faz pesquisas empíricas em áreas consideradas ‘de borda’. Temas ‘de extremidade’ ou ‘de borda’, tais como aqueles estudados pela parapsicologia, são assim qualificados não porque estão numa zona limite ou de pendência de adequação com as teorias científicas já paradigmáticas. Ora, a falta de uma teoria científica acerca de um novo fenômeno não o coloca à margem da investigação científica. Se fosse assim, estudar hoje assuntos como matéria e energia escuras na cosmologia/astrofísica seria debruçar-se sobre eventos de 'borda', quando claramente não são assim considerados. Decerto, o valor semântico da qualificação ciência de extremidade aqui tem um sentido pejorativo e de rebaixamento de um tema ou campo inteiro de pesquisa à categoria de pseudociência. O real e subliminar significado de tais adjetivações, todavia, equivale a algo como na margem de adequação a uma crença, que, no caso do materialismo, constitui também uma forte ideologia disfarçada de visão científica de mundo e que vem sendo forjada e defendida desde o período da modernidade tardia.



[1]O renascimento foi um período da história Europeia (entre os séculos XIV a XVII) marcado pela revitalização do pensamento da antiguidade clássica e que acabou por culminar no desenvolvimento de ideais humanistas e naturalistas. De fato, na filosofia renascentista o humanismo pode ser considerado o vetor axiológico do período. Alicerçado em conceitos como o racionalismo e o antropocentrismo, o humanismo estimulou a análise crítica da natureza, o empirismo, primando pela razão humana em contraposição à escolástica medieval.
[2]Paralelamente, a invenção da prensa do tipo móvel (por Johannes Guttenberg, aproximadamente em 1450) acelerou o racionalismo individual em razão de uma maior democratização do aprendizado pela disseminação do saber e também dos ideais renascentistas.
[3]Importante destacar que no início da revolução científica, a própria Igreja católica já estava em crise em razão do movimento reformista principiado por Martinho Lutero. Ao contrário da ortodoxia clerical da época, os reformistas incentivavam à investigação da natureza como forma de apreciar e enaltecer Deus.
[4] Por fim, até mesmo o hermetismo com a investigação de temas quasi mágicos (a exemplo da astrologia e da alquimia) contribuiu para a formação do racionalismo, na medida em que embutia a matemática para alcançar as suas “descobertas”. De fato, a difusão da matemática criou a atmosfera para o florescimento de um método de investigação da natureza mais crítico, modificando a fabricação da própria ciência. Galileu chegou a dizer que “o livro da natureza é escrito em caracteres matemáticos”.
[5]
Richet, Charles. Tratado de Metapsíquica. vol. 01. 1ª ed. São Paulo: Lake, 1922.
[6]Carter, Chris. Science and the Near-Death Experience: How Consciousness Survives Death. Inner Traditions (August 23, 2010).
[7]Griffin, David Ray. Parapsychology, Philosophy and Spirituality: a postmodern exploration. Ed. State University of New York.
[8]A Wikipédia [link], citando a Revista História Viva - Ano III - nº 35, da Editora Duetto (São Paulo, 2006), traz interessantes dados sobre a caça às bruxas no fim da idade média e na idade moderna: “O movimento de repressão à bruxaria, iniciado na Idade Média, alcançou maior intensidade no século XV para, na segunda metade do século XVII, ter diminuída sua chama: o número de processos de feitiçaria no norte da França aumentou de 8, no século XV, para 13 na primeira metade do século XVI, e 23 na segunda metade, chegando a 16 na primeira metade do século XVII, diminuindo para 3 na segunda metade daquele século e para um único no seguinte. (Claude Gauvard - membro do Institut Universitaire de France). Em 1233 o Papa Gregório IX admitiu a existência do sabbat e esbat. O Papa João XXII, em 1326, autorizou a perseguição às bruxas sob o disfarce de heresia. O Concílio de Basileia (1431-1449) apelava à supressão de todos os males que pareciam arruinar a Igreja. Uma psicose se instalou. Comunidades do centro-oeste da França acusavam seus membros de feitiçarias. Na Aquitânia (1453) uma epidemia provocou muitas mortes que foram imputadas às mulheres da região, de preferência as muito magras e feias. Presas, submetidas a interrogatórios e torturadas, algumas acabavam por confessar seus crimes contra as crianças, e condenadas à fogueira pelo conselheiro municipal. As que não confessavam eram, muitas vezes, linchadas e queimadas pela multidão, irritada com a falta de condenação. Os tratados demonológicos e os processos de feitiçaria se multiplicaram, por volta de 1430, marcando uma nova fase da história pré-iluminista, de trágicas dimensões. Em 1484 o Papa Inocêncio VIII promulgou a bula Summis desiderantes affectibus, confirmando a existência da bruxaria. Em 1484 a publicação do Malleus maleficarum ("Martelo das Bruxas") orientou a caça às bruxas com ainda maior violência que obras anteriores, associando heresia e magia à feitiçaria.
A Inquisição, instituída para combater a heresia, agravou a turba de seguidores inspirados por Satã. Havia, ainda, um componente sexista. Os bruxos existiam, mas eram as mulheres, sobretudo, que iam queimadas nas fogueiras medievais.
[9]The Society for Psychical Research: A History 1882-1982. Macdonald & Co. London & Sydney.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Materialistas e a violação da primeira regra da razão: o princípio da não-autocontradição

Nas linhas abaixo resumirei a noção de senso comum no sentido rígido como ‘critério final de aceitabilidade filosófica e científica’ desenvolvida pelo filósofo estadunidense David Ray Griffin, Ph.D., Claremont Graduate University. O raciocínio de Griffin nos faz refletir sobre certos problemas de adequação no discurso de materialistas perante certas noções que todos nós inevitavelmente adotamos na prática para regular nossas vidas. Tais problemas, no mínimo, rebaixam materialistas ao status de fraudadores da própria teoria que verbalmente defendem.

1. Introdução

A ideia que a maioria das pessoas tem é que o senso comum é falível, havendo diversos exemplos na história da ciência em que o desenvolvimento teórico e a experimentação provaram que crenças populares foram mostradas falsas, tais quais o modelo cosmológico do geocentrismo e a planicidade da Terra. Essas crenças puderam ser abandonadas porque as hipóteses que as substituíram responderam tanto pela experiência que permitiu aquelas convicções, como também por fatos adicionais que o senso comum era incapaz de esclarecer. 

No caso da planicidade da Terra, por exemplo, Aristóteles já apresentava alguns dados empíricos que a refutavam, a exemplo da visibilidade das constelações ser dependente da posição geográfica do observador e da sombra arredondada da Terra na Lua durante o eclipse lunar. Sobre o geocentrismo, a astronomia telescópica de Galileu permitiu certas observações incompatíveis com o modelo geocêntrico, como Júpiter ser o centro das revoluções de seus respectivos satélites e a existência da fase cheia de Vênus. É dizer, as novas interpretações do conjunto dos dados, esfericidade da Terra e heliocentrismo, deram cabo não apenas das experiências perceptivas que permitiram a convicção na planicidade e no geocentrismo, como também de observações adicionais inconciliáveis com os modelos ultrapassados. Em tais casos, Griffin diria que o senso comum está num sentido suave (ou soft-core common sense).

O conceito de senso comum rígido (ou hard-core common sense), por outro lado, parte do princípio de que existem algumas noções universais as quais todos os seres humanos inevitavelmente pressupõem na prática, ainda que eles as neguem verbalmente. Griffin observa que, quando concordamos que a ciência tem falsificado o senso comum suave, nós devemos continuar acreditando que ela assim persistirá fazendo. No entanto - diz ele - essa admissão não permite concluir que a ciência deve nos levar a duvidar das noções de senso comum rígido, porque elas são pressupostas na prática da própria ciência. Elas fornecem o "último apelo" para o qual toda teoria, incluindo a teoria científica, deve curvar-se

2. Principais noções de senso comum rígido negadas por materialistas

O assunto pode estar um pouco nebuloso neste início. Vamos então exemplificar algumas das principais noções de senso comum rígido para entender porque elas devem ser consideradas como o critério final para qual toda teoria, inclusive a científica, deveria se adequar. Das três noções abaixo, as duas primeiras serão analisadas, respectivamente, pela visão de diferentes tipos de materialistas (eliminativo e epifenomenalista), e a última aponta uma noção (a liberdade) que todo materialista deve (ou deveria) explicitamente negar.

Apesar de haver uma negação verbal dessas noções, todos os seres humanos (inclusive materialistas eliminativos e epifenomenalistas) inevitavelmente as pressupõem na prática, o que revela, no mínimo, a insuficiência de suas teorias.  Nas palavras de Alfred N. Whitehead: “o que quer que seja encontrado na ‘prática’ deve situar-se no âmbito da descrição metafísica. Quando a descrição não inclui a 'prática', a metafísica é inadequada e requer revisão (Apud Griffin, p. 18)[1].

1ª noção - a realidade da experiência consciente. Alguns materialistas abraçam um modelo eliminativo e assim negam a realidade de suas próprias experiências (a exemplo de Daniel Dennett e Georges Rey). Eles entendem que uma vez explicados todos os problemas fáceis da consciência toda a ciência da mente está resolvida, não existindo um fenômeno chamado experiência para ser explicado. Eles afirmam que aquilo que não pode ser externamente analisado não pode ser real. Outros verbalmente admitem a realidade da experiência, mas a identificam com alguns dos problemas fáceis (como reportabilidade e focalização de atenção), o que equivale, no final das contas, a negar a experiência (ela não é tomada como um fenômeno em seu próprio direito) [para saber mais sobre o que é experiência, veja o post 'A experiência consciente em David Chalmers: uma pedra no sapato do materialista'].

Essas posições materialistas são verdadeiramente espantosas, porque a única coisa que temos acesso direto é a experiência. Por exemplo, quando você observa uma 'rosa vermelha', a forma, dimensões e cor vermelha desse objeto integram a experiência de enxergar 'rosa vermelha'. Da mesma maneira, a sua fragrância, a aspereza de suas pétalas, a rigidez de seu caule e a agudeza de seus espinhos, são todas experiências (do tipo sensorial). Do ponto de vista materialista, sua experiência daquela 'rosa' (que engloba experiências visuais, olfativas, tácteis, etc.) segue, resumidamente, o seguinte roteiro: os canais sensoriais de seu corpo são estimulados por inputs externos, tais estímulos são transformados em impulsos eletroquímicos que sobem o sistema nervoso periférico até o cérebro onde acontece a experiência relacionada àquela rosa (você a enxerga como vermelho e visualiza dimensões e formas, sente um odor específico, a aspereza das pétalas e a agudeza de seus espinhos, e assim seguem outras modalidades de experiência). Em outras palavras: seu corpo/cérebro cria uma simulação do objeto externo e ficamos vendidos quanto à certeza de saber se a simulação corresponde a uma cópia fiel da coisa simulada [para mais detalhes, veja 'O Materialismo e a negação da realidade do mundo exterior']. O fato de reportarmos a experiência da mesma 'rosa' de maneiras semelhantes não significa que a aparente regularidade da experiência implica que os nossos corpos estejam fielmente simulando o objeto como ele é em si mesmo, pois, considerando que todos nós compartilhamos estruturas isomórficas, podemos igualmente compartilhar as mesmas limitações no processo de simulação do mundo externo.

A única certeza que temos, de fato, é que estamos experienciando aquela 'rosa' (ou qualquer outra coisa do mundo externo) do jeito que a estamos experienciando. Numa perspectiva materialista, conhecer a realidade de um objeto externo tal como ele é em si mesmo é algo inatingível, porque todo o conhecimento do mundo é mediado pelo corpo. O materialismo, assim, implica uma duplicação epistemológica do Universo que nos circunda. De um lado, temos o mundo como ele é em si mesmo (para todo o sempre inatingível em razão do acesso indireto que temos dele) e, de outro, o mundo tal qual o experienciamos, com todas as suas regularidades, ainda que não correspondam fielmente às características inerentes a ele. A consequência mais relevante disso tudo é que as observações empíricas subjacentes à prática da própria atividade científica recaem sobre o 'mundo da experiência', sendo bastante contraditório alguém negar verbalmente a realidade da experiência quando, na prática de todas as atividades humanas, inclusive na prática da experimentação científica, todos nós inevitavelmente pressupomos experiência.

2ª noção - a eficácia da experiência sobre o nosso comportamento corporal. Alguns materialistas adotam uma versão epifenomenalista sobre a experiência e, apesar de admitirem sua realidade, negam que ela possa ter algum poder de influência sobre o corpo. Essa é outra alegação materialista que colide frontalmente com mais uma de nossas noções de senso comum rígido

A ideia que um epifenomenalista tem é que estados físicos causam estados fenomenais, i.e., estados de experiência (upward causation), mas não o contrário (downward causation). A relação entre cérebro e consciência seria, assim, algo assimétrico e unidirecional. Por exemplo, a experiência de decisão (tal como sobre 'o restaurante que você está almoçando', 'o livro que está lendo', 'a roupa que está vestindo agora', etc.) seria, para o epifenomenalista, um subproduto da maquinaria neural sem qualquer papel causativo. É como a sombra que acompanha nossos corpos. Ela existe, mas é algo totalmente ineficaz em nosso funcionamento. Chalmers (2010[2]) esclarece esta espécie de materialismo da seguinte forma:

"[...]estados fenomenais não têm efeito sobre nossas ações, fisicamente interpretadas. Por exemplo, uma sensação de dor não irá desempenhar nenhum papel causal na minha mão se afastando de uma chama; a minha experiência de decisão não vai exercer nenhum papel causal em minha mudança para um novo país; e uma sensação de vermelho não vai exercer nenhum papel causal na minha elocução 'Eu estou experimentando vermelho agora'".

No entanto, conforme esse filósofo reconhece, "essas consequências são muitas vezes consideradas obviamente falsas ou, pelo menos, inaceitáveis". Epifenomenalistas podem responder que a aparente obviedade da influência da experiência sobre o corpo acontece porque existem certas leis psicofísicas (i.e., leis que estabelecem uma relação entre estados físicos e fenomenais) que determinam que certos tipos de experiências sejam seguidas por certos tipos de ações, mas sem nenhuma relação causal. Chalmers hipotetiza que isso seria algo como a constante de conjunção (tal como destacou David Hume em outro contexto).

Mas se esse é o caso, o epifenomenalista nos deveria apresentar algo adicional para aceitarmos sua posição e assim abandonarmos a noção de causação psicofísica descendente, especialmente porque todos os seres humanos inevitavelmente pressupõem na prática de suas atividades diárias, inclusive científicas e filosóficas, que suas experiências sensoriais, que seus desejos, crenças e ideias, exercem um papel causal marcante na regulação de suas ações. Talvez o epifenomenalista se sinta um sujeito especial (quem sabe?!) e ele próprio seja uma exceção à regra. De qualquer forma, o ônus da prova é todo seu, especialmente o de explicar, fora de uma relação de causalidade, como e por que existiriam conexões regulares entre certos tipos de experiência e certos comportamentos subsequentes.

Griffin (1998) destaca essa contradição do epifenomenalista, entre teoria e prática, nas seguintes palavras:

"O fato de que todos nós pressupomos a eficácia da experiência consciente na prática é bem indicado por Ted Honderich, que fala do 'axioma do carácter indispensável do mental'. A principal recomendação deste axioma, diz ele, é 'a futilidade de contemplar a sua negação'. [...] Searle inclui 'a realidade e a eficácia causal da consciência' (RM, 54) entre os óbvios fatos sobre nossas mentes, endossando 'a objeção do senso comum para o materialismo eliminativo', que é 'louco dizer que... minhas crenças e desejos não exercem qualquer papel no meu comportamento' (RM, 48). Na verdade, é pior do que louco. Como Honderich diz, é inútil, quer dizer, é auto-refutável, porque o próprio ato de negar a eficácia da consciência, seja pela fala ou escrita, pressupõe-na. Nas sarcásticas palavras de Whitehead, 'os cientistas animados no propósito de provar que eles estão sem propósito constitui um assunto interessante para estudo'".

3ª noção - a liberdade (no sentido de autodeterminação parcial). Em relação as duas noções acima, a liberdade provavelmente é o conceito mais incompatível com o materialismo. Griffin (1997[3]) observa que a razão porque a liberdade não pode ser defendida em teoria por materialistas – embora a pressuponham na prática – é que a “mente”, segundo a perspectiva deles, não é em nenhum sentido uma realidade distinta do cérebro com algum poder autônomo próprio. Ele ainda observa que:

Ainda que a indeterminação quântica seja considerada para qualificar a antiga noção de determinismo causal absoluto, como a indeterminação de trilhões de partículas poderiam ser responsáveis por nosso senso de liberdade nem de longe seria algo claro. Em qualquer caso, a indeterminação das partículas ou eventos individuais é geralmente anulada em agregados pela 'lei dos grandes números'. E, de fato, pelo menos virtualmente, todos os materialistas negam a liberdade" (1998).

Liberdade implica na existência de escolhas genuínas, i.e., na possibilidade de que alguém (pela menos sob algumas circunstâncias) efetivamente pudesse determinar um comportamento diverso daquele que foi praticado. O problema é que o materialista diz que a realidade somente é composta de matéria/energia e tenta explicar todo o funcionamento do Cosmos, de supernovas a você, de maneiras reducionista e previsivelmente determinista. A consequência direta é que você teria, no máximo, a experiência (ou sensação) de decidir algo, porém, em verdade, o seu comportamento seria totalmente determinado pela relação entre as estruturas e microcomponentes físicos que o compõem e o meio externo. Como Griffin (1997) coloca:

“[...] o materialismo não pode afirmar o tipo de liberdade que é pressuposta em nossas noções de responsabilidade humana. Ele não pode falar de um centro ou self que é capaz de autodeterminação, um self que, numa dada situação, poderia ter optado por agir de maneira diferente do que ele fez. A negação de tal self é, naturalmente, parte da negação de uma "mente" ou "alma" que é distinta do cérebro. Materialistas podem, com certeza, reconhecer que nós estamos envolvidos em uma atividade que chamamos de tomada-de-decisão. Mas eles têm de considerar a tomada-de-decisão como um efeito (ou melhor, um concomitante) dos processos físicos que constituem o cérebro, e não como uma atividade que é parcialmente autônoma e que pode retribuir influência para aqueles processos cerebrais, orientando assim os movimentos dos membros, língua e da laringe de alguém."

Em Unsnarling the World-Knot (p. 39), ele observa que Searle, abordando o tema da liberdade, também fez uma diferenciação parecida entre as noções de senso comum suave e rígido, pontuando que o último, ao contrário do primeiro, é inevitavelmente pressuposto na prática. Searle diz: 

"Nós não navegamos a Terra sob a assunção de uma Terra plana, ainda que a Terra pareça plana, mas nós agimos sob a assunção da liberdade. De fato, nós não podemos agir de outra forma do que sob o pressuposto da liberdade, não importa o quão nós aprendamos sobre como o mundo funciona como um sistema físico determinado" (apud, 1998).

Griffin em seguida acrescenta que a prática da própria atividade científica milita contra o determinismo:

“[...] Na verdade, se nós estamos falando sobre a prática da própria ciência - por exemplo, sobre os tipos de esforços que vão tentar fazer uma grande descoberta que irá ganhar um Prêmio Nobel, então é claro que a prática científica, longe de pressupor o determinismo, na verdade, pressupõe o contrário. Os cientistas, por exemplo, muitas vezes trabalham dezoito horas por dia, tentando fazer as desejadas descobertas antes que os cientistas de um laboratório rival as consigam fazer. Ainda no que diz respeito às entidades que os cientistas estudam, não é o caso de os cientistas pressuporem necessariamente que elas sejam estritamente determinadas. Isso obviamente ocorre na psicologia (humana). Mas também não há necessidade de que os etólogos assumam que os comportamentos dos objetos de seu estudo, como gorilas, golfinhos, ou até mesmo ratos, sejam totalmente determinados

3. Discussão sucinta e conclusão

Griffin nos concede outros exemplos de noções universais inevitavelmente pressupostas na prática, mas, diferentemente das três noções anteriores, elas são referendadas por (quase) todos os seres humanos (inclusive os materialistas). Abaixo forneço um exemplo em que há essa conciliação de uma ideia ser implicitamente adotada na prática e também explicitamente defendida na teoria.

A existência real de um mundo externo é algo que todos nós implicitamente pressupomos na regulação de nossas atividades. Você acredita que os objetos externos têm uma existência em si mesma, independentemente de você percebê-los; que a lua, o céu, as estrelas e as outras pessoas não são virtualidades projetadas por seu inconsciente. Você acredita que “tudo que está lá fora” não nasceu “de dentro de você”. Há, contudo, uma minoria de pessoas que verbalmente defende o contrário e adota uma posição filosófica conhecida por solipsismo (i.e., o solipsista restringe a realidade a apenas ao seu ‘eu’ experienciado). Se você fosse um solipsista - experiencialmente falando - o seu mundo seria exatamente igual ao mundo que você vê agora (haveria até mesmo impostos e os mesmos políticos corruptos!). 

Agora, a razão filosófica porque o solipsismo não deve ser levado a sério é porque o próprio solipsista não o leva a sério. Ele diariamente contradiz sua teoria em todas as atividades que participa. Até mesmo quando tenta defender sua posição contra o criticismo (ou ele estaria tentando convencer a si mesmo!?). Se pararmos para analisar, o solipsismo, enquanto teoria, não padece internamente de nenhuma inconsistência lógica, mas o solipsista, no mínimo, trapaceia sua própria teoria. O mesmo se diga para os materialistas eliminativos (quanto à realidade da experiência consciente); para epifenomenalistas (no que diz respeito ao papel causal da consciência) e para todas as espécies de materialistas (no que tange à liberdade da vontade ou de autodeterminação parcial). Na prática, todos eles inevitavelmente traem as teorias que verbalmente defendem

Você poderia discordar de mim e argumentar que a razão de o solipsismo não ser levado a sério é porque ele não é (cientificamente) testável, ou seja, porque o solipsismo implica numa alegação irrefutável (ou não falseável). Você poderia ainda alegar que existem teorias materialistas testáveis que apontam para a falsidade da realidade e papel causal da experiência e da liberdade, então não seria o caso de comparar o solipsismo com o materialismo. Para isso tenho duas considerações:

1ª- o debate da relação mente-cérebro (ao contrário do que alguns podem pensar) é eminentemente metafísico, como quase (senão todas) as questões ontológicas. Não existe uma teoria científica materialista para o problema mente-cérebro. Tudo o que há são especulações metafísicas. Nossa ciência de hoje é sobejamente materialista não por razões ‘de evidência’, mas por razões ‘de ideologia’, uma que veio sendo forjada gradativamente desde a Revolução Científica do século XVII;

2ª- dizer que uma alegação é não-falseável excluiu sua cientificidade, contudo, não a retira do leque de opções metafísicas que continuam com chances de responder pela realidade final do Universo. A conclusão disso é uma limitação da metodologia da própria ciência: ela é incapaz de lidar com as hipóteses que se ajustam aos fatos observados, mas que não podem (pelo menos no momento) serem refutadas. Existe então um certo pragmatismo na ciência e desse ponto, acredito, nem os próprios materialistas irão discordar. 

A relevância das crenças de senso comum rígido – acredito - seria então de dar um passo além desse critério de falseabilidade popperiano; elas consubstanciam uma interessante ferramenta para nos orientar tanto sobre as nossas interpretações dos experimentos científicos quanto sobre as especulações metafísicas direcionadas a questões ontológicas, atingindo assim uma área que até mesmo a ciência é incapaz de alcançar. Como Griffin coloca: elas funcionam “como uma bússola a dizer-nos quando estamos saindo do curso”. 

E por que deveria ser assim? Por que as noções de senso comum rígido deveriam ser tomadas como o critério final de julgamento de adequação de uma teoria? Griffin responde que a primeira regra da razão é o princípio da não-contradição. Uma posição que é autocontraditória não pode ser verdadeira. Ele entende que, se nós rejeitarmos em nossas filosofias explícitas qualquer daquelas noções que inevitavelmente pressupomos na prática, nós necessariamente entramos em autocontradição entre nossas ideias explícitas e implícitas. Acrescenta ainda que, se nós não podemos deixar de pressupor aquelas noções de senso comum rígido (incluindo a realidade e papel causal da consciência e a liberdade), “este fato provê uma devastadora razão para considerarmos que tais noções são verdadeiras”, o que é ignorado muitas vezes porque o senso comum rígido é meramente rejeitado em nome de crenças de senso comum suave.

Griffin (1998) ainda observa que, nesta era relativista, muitos filósofos “tenderão a suspeitar (se não rejeitar de antemão) da ideia de que existem noções ou pressuposições universais.” Depois observa que, quando tais filósofos perceberem que certa noção universal não pode ser refutada simplesmente apontando que é provável que toda noção "óbvia" foi negada por alguém (porque a alegação é sobre pressuposições na prática, e não sobre crenças explícitas ou verbais) - muitos ainda resistirão e vão querer colocar o ônus da prova naqueles que alegam as pressuposições universais. Griffin então rebate dizendo que: 

“Nenhuma alegação universal, é claro, pode ser provada por qualquer número de exemplos. Mas uma alegação universal pode ser refutada por um único exemplo negativo: como William James disse, basta apenas um corvo branco para provar que todos os corvos não são negros. Portanto, o ônus realmente está sobre aqueles que negam a afirmação universal. Eles precisam chegar a pelo menos um exemplo de alguém, talvez a si próprios, capaz de viver sem pressupor a noção [universal] (...)". 

E conclui:

“[...] enquanto as alegações de tais noções sobrevivem a todas as tentativas de as refutar, elas [...] devem ser consideradas como os critérios finais para julgar a adequação de uma teoria, e isso por uma simples razão: se não podemos deixar de pressupor essas noções na prática, incluindo na prática da experimentação científica e de construção teórica, somos culpados de autocontradição se a nossa teoria nega essas noções."


[1] Griffin, David Ray. Unsnarling the World-Knot: Consciousness, Freedom, and the Mind-Body Problem. Berkeley, Calif:  University of California Press, c1998 1998. http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft8c6009k3/
[2] Chalmers, David J. The character of consciousness. Oxford University Press, Inc, New York.
[3] Griffin, David Ray. Parapsychology, Philosophy and Spirituality: a postmodern exploration. Ed. State University of New York.